domingo, 4 de julho de 2010

PATRÍSTICA - Carta de S. Clemente Romano aos Coríntios.

Carta de S. Clemente Romano aos Coríntios.

Comentários entre colchetes e em azul

A Igreja de Deus que tem sua residência transitória [os cristãos da época insistiam na visão transitória da existência terrena – o final dos tempos estava às portas] em Roma à Igreja de Deus com residência transitória em Corinto aos eleitos, santificados na vontade de Deus, por intermédio de nosso Senhor Jesus Cris¬to. Que a graça e a paz vos sejam concedidas em plenitude da parte do Deus todo-poderoso por intermédio de Jesus Cristo.


1 – (1) Por causa das desgraças e das calamidades que se precipitaram repentina e sucessivamente sobre nós [aqui se refere a perseguição de Domiciano (81-96)], talvez estejamos a ocupar-nos com atraso dos acontecimentos que se deram entre vós, caríssimos, e daquela sedição estranha a eleitos de Deus [cf Rom 8,33; Col 3,12], sórdida e ímpia que um punhado de gente irrefletida e audaciosa iniciou, e a tal ponto de loucura incendiou, que o vosso nome, aliás acatado e celebrado, por todos estimadíssimo, fosse seriamente denegrido. (2) Pois, quem é que se demorou entre vós e não enalteceu vossa fé extraordinária e firme? Não admirou vossa piedade consciente e suave em Cristo? Não encomiou a tradição de vossa hospitalidade generosa? Ou não vos felicitou por vossa doutrina perfeita e segura? (3) Tudo realizáveis sem acepção de pessoas [cf 1Ped 1,17] e andáveis nos preceitos de Deus, sujeitando-vos aos vossos guias [cf At 15,22; Heb 13, 7.17.24] e tributando aos vossos anciãos [Ancião = “presbyteros”; Responsáveis pela comunidade = “presbyteroi”: ambos os termos se referem ao que hoje conhecemos por padres] o respeito que lhes é devido. Aos jovens transmitíeis conceitos comedidos e honrosos; às mulheres recomendáveis cumprissem os deveres todos em consciência irrepreensível, santa e pura, amando os maridos co¬mo convém; ensinando-lhes ainda a administrar a vida doméstica dentro das normas da obediência e da mais absoluta discrição.


2 – (1) Todos ainda alimentáveis sentimentos de humildade, isentos de qualquer jactância, mais dispostos a submeter-vos [cf Ef 5,21; 1Ped 5,5] do que a submeter, dando com mais gosto do que recebendo [At 20,35]. Contentando-vos com o que Cris¬to vos dava como viático [i.e. a graça para chegar ao Pai, o alimento espiritual] e meditando sobre suas pa¬lavras, vós as guardáveis cuidadosamente em vossos co¬rações, enquanto seus sofrimentos pairavam diante de vossos olhos. (2) Desta sorte, uma paz profunda e abençoada se comunicava a todos e um desejo insaciável de praticar o bem, e a efusão plena do Espírito Santo se produzia em todos [cf Joel 3,1; Rom 5,5; Tito 3,5s; Ap 2,17]. (3) Repletos de uma vontade santa, num zelo bom, levantáveis piedosamente vossas mãos para o Deus onipotente, suplicando-Lhe sua misericórdia, quando cometíeis involuntariamente alguma falta. (4) Dia e noite, travava-se entre vós uma luta em favor de toda a fraternidade [cf 1Ped 2,17], a fim de conseguir pela misericórdia e pela conscienciosidade a salvação de todos os seus eleitos. (5) Éreis autênticos e incorruptos, sem malícia uns para com os outros. (6) Toda revolta e todo cisma vos causavam horror. Sobre as faltas de vossos próximos vos entristecíeis; seus defeitos, os tínheis em conta de vossos. (7) Não havia por que arrepender-vos por omissão de qualquer bondade, pois estáveis dispostos para toda a ação boa. (8) Ornados por uma conduta toda virtuosa e honrosa, cumpríeis todas as vossas ações em seu temor. Os mandamentos e as normas jus¬tas do Senhor estavam escritos sobre as fibras de vos¬sos corações.


3 – (1) Plena reputação e prosperidade vos foi concedida, cumprindo-se a palavra da Escritura: «O muito amado comeu e bebeu, engordou e empanturrou-se, e recalcitrou» [Dt 32,15]. (2) Daí nasceram ciúme [o ciúme é grande obstáculo ao plano de Deus] e inveja, discórdia e revolta, perseguição e desordem, guerra e cativeiro. (3) Assim é que se levantaram os sem honra contra os honrados [cf Is 3,5] os sem respeito contra os respeitados, os insensatos contra os sensatos, os jovens contra os anciãos. (4) Por isso a justiça e a paz se afastaram para longe [cf Is 59,14] no momento em que cada qual abandonou o temor de Deus e se obscureceu o olhar em sua fé, não andando conforme as prescrições de seus mandamentos nem conduzindo-se de maneira digna de Cris¬to [cf Fil 1,27]. Pelo contrário, cada qual andando segundo os desejos de seu coração perverso, admitindo em si um ciúme injusto e ímpio, ciúme que aliás gerou a morte pa¬ra o mundo [cf Sab 2,24].

4 – (1) Pois assim está escrito: «E aconteceu, após dias, que Caim oferecesse dos frutos da terra um sacrifício a Deus e também Abel por sua vez oferecesse das primícias dos rebanhos e das gorduras deles. (2) E olhou Deus para Abel e seus dons, não reparando porém em Caim e seus sacrifícios. (3) Entristeceu-se muito Caim e seu rosto se abateu. (4) Falou então o Senhor a Caim: Por que te tornaste sombrio e por que se te abateu o rosto? Acaso não pecaste, pois embora tua oferenda fosse correta, a escolha dela não o foi. (5) Acalma-te. A oferenda voltará a ti e poderás dela dispor. (6) Falou então Caim a Abel seu irmão: Vamos para a planície. E aconteceu que enquanto estavam na planície, Caim se levantou contra Abel seu irmão e o matou» [Gn 4, 3-8]. (7) Vede, irmãos, ciúme e inveja produziram fratricídio. (8) Por motivos de ciúme, nosso pai Jacó fugiu diante da face de Esaú seu irmão [Gn 27, 41ss]. (9) Ciúme fez com que José fosse perseguido à morte e acabasse na cadeia [Gn 37]. (10) Ciúme obrigou Moisés a fugir da presença de Faraó, rei do Egito, na hora de ouvir de um de seus compatriotas: Quem é que te constituiu árbitro e juiz sobre nós [cf Lc 12,14; At 7,27]? Não queres matar-me a mim, da mesma forma como ontem mataste o egípcio? [Ex 2, 14] (11) Por causa do ciúme, Aarão e Maria foram expulsos do acampa¬mento [Nm 12]. (12) Ciúme conduziu a Datã e Abirão vivos para o Hades, por se revoltarem [Nm 16] contra Moisés o servo de Deus [cf Nm 12,7; Heb 3,5]. (13) Por ciúme, Davi não apenas colheu inveja da parte dos estrangeiros, mas foi até perseguido por Saul rei de Israel.

5 – (1) Mas, para pormos termos aos exemplos antigos, passemos aos atletas [exemplo muito claro já citado por S. Paulo] que nos tocam de muito perto: verifiquemos os nobres exemplos de nossa geração. (2) Por ciúme e inveja, foram perseguidos e lutaram até à mor¬te as nossas colunas [As Colunas = Pedro e Paulo, mortos na perseguição de Nero] mais elevadas e mais retas. (3) Fixemos nossa vista sobre os valorosos apóstolos. (4) Pedro, que por ciúme injusto não suportou apenas uma, ou duas, mas numerosas provas e, depois de assim render testemunho [”Martyréo”, do Grego = dar testemunho], chegou ao lugar [cf jo 14, 2; At 1, 25]merecido da glória. (5) Por ciúme e discórdia, Paulo ostentou o preço da paciência. (6) Sete vezes carregado de cadeias, exilado, apedrejado, arauto no Oriente e no Ocidente, recebeu a ilustre glória por sua fé. (7) Ensinou ao mundo todo a justiça e chegou até aos confins do Ocidente [referência à possível viagem de Paulo à Espanha?], dando testemunho diante das autoridades. Assim deixou o mundo e foi em busca do lugar santo, ele, que se tornou o mais ilustre exemplo de paciência.

6 – (1) A esses homens de conduta santa ajuntou-se grande multidão de eleitos [a multidão ceifada por Nero], que, por ciúme, suportaram muitos ultrajes e torturas e se transformaram no mais belo exemplo entre nós [em Roma]. (2) Por ciúme, foram per¬seguidas mulheres, que, quais Danaídes e Dírces [personagens mitológicos gregos – bem conhecidas na época – que sofreram atrocidades], sofreram afrontas atrozes e sacrílegas, percorrendo a trajetória segura da fé [cf At 13, 25; 20,24; 1Cor 9,24s; 2Tim 4,7] e obtendo o nobre prêmio, elas que eram fracas no corpo. (3) Ciúme separou esposas de esposos, transtornando a palavra de nosso pai Adão: «Ela é osso de meus ossos e carne de minha carne» [Gn 2,23]. (4) Ciúme e intriga destruíram grandes cidades e erradicaram nações poderosas [como aconteceu a Corinto, por mãos romanas, em 146 aC].

7 – (1) Ao vos escrevermos tais coisas, caríssimos, não apenas vos levamos à reflexão mas também nos advertimos a nós mesmos: pois nos encontramos no mesmo campo de batalha e a mesma luta [Cf Filip 1,30]nos espera. (2) Abandonemos pois as opiniões vazias e tolas e vol¬temo-nos para a regra gloriosa e santa da tradição [a tradição era levada muito a sério pelos cristão, que transmitiam oralmente o que ouviam dos apóstolos, bispos e presbíteros]. (3) E vejamos o que é belo, o que é agradável e o que é aceito [cf Sl 132,1; 1Tim 2,3; 5,4] aos olhos daquele que nos fez. (4) Fixemos o olhar no sangue de Cristo e compreendamos quanto é precioso [cf 1Ped 1,19] aos olhos do Pai, pois derramando-o por nos¬sa salvação ofereceu-o ao mundo todo pela conversão [“metánoia”, do Grego = conversão, isto é reconhecer a própria falta, arrependimento e volta ao Pai]. (5) Percorramos as gerações todas e aprendamos que de geração em geração o Senhor deu possibilidade de conversão [Sab 12,10] àqueles que a Ele quiseram voltar. (6) Noé anunciou a conversão e salvaram-se os que o escutaram. (7) Jonas anunciou aos ninivitas a ruína: os que fizeram penitência de seus pecados reconciliaram-se com Deus por suas súplicas e alcançaram salvação [Cf Jon 3; Mt 12,41; Lc 11,32], embora fossem estranhos a Deus [não pertenciam ao povo de Israel].

8 – (1) Sobre a conversão falaram os ministros da graça de Deus sob inspiração do Espírito Santo. (2) Sobre a conversão falou ainda o próprio Senhor de tudo, jurando: «Tão certo como vivo, diz o Senhor, não quero a morte do pecador mas sua conversão» [Ez 33,11]. E acrescentou um belo conselho: (3) «Convertei-vos, casa de Israel, de vosso erro! Dize aos filhos de meu povo: Ainda que vossos pecados se amontoassem da terra até ao céu, ainda que fossem mais vermelhos que a púrpura e mais negros que o saco [cf Is 50,3; Ap 6,12], se vos voltardes para mim de todo coração e disserdes: Pai!, eu vos atenderei como se fôreis um povo santo» [cf Jer 24,7; Ez 33,11ss]. (4) Em outra parte ainda fala assim: «Lavai e purificai-vos, afastai as maldades de vossas almas de diante de meus olhos. Deixai de vos¬sas maldades, aprendei a praticar o bem, procurai a justiça, socorrei ao oprimido, fazei justiça ao órfão, de¬fendei a viúva, e então também vinde para pormos as coisas em ordem, diz o Senhor. E se vossos pecados forem como púrpura, os tornarei brancos como neve, se forem escarlate, como lã os farei alvos. Se vos dispuserdes a escutar-me, comereis os bens desta terra; se porém não quiserdes ouvir-me, a espada vos devorará. A boca do Senhor falou isso» [Is 1,16-20]. (5) No desejo de levar todos os seus amados a participar da conversão, fortaleceu-vos por sua vontade todo-poderosa.


9 – (1) Por isso, obedeçamos a sua vontade excelsa e gloriosa; supliquemos, prosternados, piedade e bondade; recorramos às suas misericórdias; abandonemos a vaidade, a discórdia e o ciúme que conduz à morte. (2) Fixemos os olhos sobre aqueles que serviram com perfeição à sua magnífica glória [2Ped 1,17]. (3) Tomemos por exemplo Enoc, que, encontrado justo em sua submissão, foi arrebatado e não se encontrou indício de sua morte [Gen 5,24; Heb 11,5]. (4) Noé, reconhecido fiel, recebeu o encargo de anunciar o renascimento do mundo, e o Senhor salvou por ele os seres que entraram em harmonia para dentro da arca [Gen 6,8s; 7,1; 8,18s; Heb 11,7; 2Ped 2,5].


10 – (1) Abraão, proclamado o amigo [cf Is 41,8], se revelou fiel em sua submissão às palavras de Deus. (2) Por obediência, saiu ele de sua terra, dentre seus parentes e da casa de seu pai; para assim deixar uma terra peque¬nina, uma parentela pouco importante, uma casa mo¬desta, e herdar as promessas de Deus. Pois é Ele quem lhe diz: (3) «Deixa tua terra, teus parentes e a casa de teu pai, para te dirigires à terra que eu mostrarei. Hei de fazer de ti um povo grande; abençoar-te-ei e engrandecerei teu nome, e serás abençoado. E abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem. Em ti serão benditas todas as tribos da terra» [Gen 12, 1-3; cf Heb 11,8]. (4) Outra vez, ao separar-se ele de Ló, falou-lhe Deus: «Levanta teus olhos e mede o espaço daqui onde estás em direção a norte e sul, leste e mar: pois toda essa terra que vês eu te darei a ti e à tua descendência para sempre. (5) Farei tua descendência como o pó da terra: se alguém chegar a contar o pó da terra então se contará também tua descendência» [Gn 13,14-16]. (6) E ainda diz: «Conduziu Deus a Abraão para fora e lhe falou: Levanta os olhos para o céu e conta os astros, se é que consegues contá-los; assim será a tua descendência. Abraão acreditou em Deus e isso lhe foi imputado como justificação» [Gen 15, 5-6; cf Rom 4,3; Heb 11,12, Tgo 2,23]. (7) Por causa da fé e da hospitalidade [cf Gen 18], foi-lhe dado um filho na velhice e por obediência ele o ofereceu como sacrifício a Deus sobre um dos montes que Ele lhe mostrara [Gen 21, 1-7; 22, 1-19; cf Heb 11, 11.17; 6, 12-15].


11 – (1) Por causa da hospitalidade e piedade, Ló se salvou de Sodoma, quando a terra em torno foi castigada com fogo e enxofre. Assim o Senhor tornou claro que não abandona os que esperam nele, mas que entrega os que se apóiam alhures ao castigo e ao suplício. (2) A mulher acompanhava-o efetivamente na saída, sem contudo partilhar sua fé e crença e transformou-se num sinal disso; a ponto de reduzir-se a uma estátua de sal até aos nossos dias, para assim todos poderem inteirar-se de que os de alma dupla [cf Tgo 1,8; 4,8] e os desconfiados do poder de Deus serão punidos para escarmento de todas as gerações.


12 – (1) Pela fé e hospitalidade, salvou-se Raabe, a meretriz [Jos 2; cf Heb 11,31; Tgo 2,25]. (2) Pois ao serem enviados espias por Jesus, filho de Navé, para Jericó, o rei do país soubera que haviam chegado para explorar-lhes a terra; enviou então homens para os prenderem, e, uma vez presos, ma¬tarem. (3) Raab a hospitaleira recebeu-os e ocultou-os no andar superior debaixo da palha de linho [Jos 2,3]. (4) Quando se apresentaram os emissários do rei e lhe falaram: «Aqui entraram os espias que vieram reconhecer nossa terra. Entrega-os, pois é o rei que assim manda», respondeu¬lhes ela: «De fato entraram em minha casa os homens que procurais, mas logo se retiraram e continuam seu caminho» [Jos 2, 1-6]. E ela apontou-lhes a direção oposta [Jos 2, 9-13] (5) Falou ela então aos espias: «Sei e disso me convenci: o Senhor Deus vos entrega esta terra, pois o medo e o pânico se apoderaram dos habitantes. Quando pois acontecer que a conquisteis salvai-me a mim e a casa de meu pai» [Jos 2,14]. (6) Os espias lhe retrucaram: «Há de ser assim como falaste. Quando pois nos vires aproximar, hás de reunir todos os teus sob o teu teto e serão salvos, pois todos quantos se encontrarem fora de casa perecerão» . (7) Propuseram-lhe ainda como sinal, que dependurasse da casa dela algo de vermelho, tornando assim evidente que pelo sangue do Senhor viria a redenção para todos os que cressem e esperassem em Deus. (8) Vede, amados, que nesta mulher não houve apenas fé, mas também dom de profecia.


13 – (1) Tornemo-nos pois humildes, irmãos, depondo toda jactância, orgulho, excesso e ira, para cumprirmos o que está escrito. Pois diz o Espírito Santo: «Não se orgulhe o sábio em sua sabedoria, nem o forte em sua força, nem o rico em sua riqueza, mas aquele que se gloriar glorie-se no Senhor [cf 1Cor 1,31; 2Cor 10,17], para procurar a Ele e praticar o direito e a justiça» [Jer 9, 23-24]. Antes de mais nada, lembremo-nos das palavras que o Senhor Jesus falou [cf At 20,35] como mestre de eqüidade e magnanimidade. (2) Pois foi assim que ele disse: Sede misericordiosos, para obterdes misericórdia; perdoai, para serdes perdoados; assim como fizerdes, ser-vos-á feito; como derdes, ser-vos-á dado; como julgardes, sereis julgados; como fizerdes o bem, ser-vos-á feito; com a medida com que medirdes, vos será medido em troca [Mt 5,7; 6, 14.15; 7, 1-2.12; Lc 6, 31.36-38]. (3) Com este manda¬mento e estes preceitos, fortaleçamo-nos a nós próprios, para andarmos na submissão à suas sagradas palavras em toda humildade. Pois a palavra sagrada assim reza: (4) Para quem hei de olhar, senão para o manso e pacífico e para aquele que respeita os meus oráculos? [Is 66,2]


14 – (1) É justo e santo, irmãos, tornarmo-nos antes submissos a Deus do que seguirmos àqueles que se deixam levar pela arrogância e orgulho, aos instigadores do miserável ciúme. (2) Expor-nos-emos não a prejuízo qualquer, mas a grande perigo, se nos entregarmos temerariamente aos caprichos dos homens, que visam a discórdia e a sedição para alienar-nos da boa conduta. (3) Sejamos bondosos uns para com os outros, seguindo a misericórdia e a doçura de nosso Criador. (4) Pois está escrito: Os mansos habitarão a terra; os inocentes serão deixados sobre ela, enquanto que os pecadores serão exterminados dela [Sl 36, 9.38; Prov 2,21-22]. (5) E em outra ocasião: «Vi o ímpio exaltar-se orgulhoso como os cedros do Líbano; passei, e eis que ele já não existia; procurei então o lugar dele e não o encontrei. Guarda a inocência e observa a justiça, pois se consagra a memória do homem portador da paz [Sl 36, 35-37].


15 – (1) Unamo-nos pois aos que mantêm a paz na santidade, e não aos que pretextam a paz por hipocrisia. (2) Pois diz-se em algum lugar: «Este povo me honra com os lábios, enquanto que o seu coração se encontra longe de mim» [Is 29, 13; Mt 15,8; Mc 7,6]. (3) E novamente: «Abençoavam com a boca, mas com o coração amaldiçoavam» [Sl 61,5]. (4) E novamente: «Amavam-no com os lábios e com a língua lhe mentiam; o coração não era sincero para com ele, nem se mantiveram fiéis à aliança dele» [Sl 77, 36-37]. (5) «Por isso se tornem mudos os lábios dolosos que proferem maldades contra o justo» [Sl 30, 19]. E ainda: «Que o Senhor extermine todos os lábios dolosos, a língua arrogante, os que dizem: Engrandecemos nossa língua; nossos lábios estão em nosso poder! Quem é nosso Senhor? (6) Por causa da miséria dos pobres e do gemi¬do dos necessitados levantar-me-ei agora, diz o Senhor. Colocá-los-ei a salvo. (7) Julgarei seu caso com isenção» [Sl 11, 4-6].


16 – (1) Pois Cristo pertence aos humildes e não aos que se elevam acima da grei. (2) O cetro da majestade de Deus, o Senhor Jesus Cristo, não veio com aparato de arrogância e orgulho, embora pudesse tê-lo feito, mas com humildade, como o Espírito Santo sobre Ele anunciou. Pois disse: (3) «Senhor, quem deu crédito à nossa palavra? A quem se revelou o braço do Senhor? Nós anunciamos em presença d’Ele: como escravo, co¬mo raiz em terra sedenta é ele! Não possui nem beleza nem brilho. Nós o vimos, não tinha beleza, nem aparência agradável. Sua beleza era antes desprezível, per¬dia para a beleza dos homens. Um homem açoitado. trabalhado e habituado a sofrer fraquezas; afastou o rosto, menosprezado; não contou para nada. (4) Ele car¬rega nossos pecados e sofre por nós; vimos n’Ele um homem atormentado, açoitado e humilhado. (5) Foi coberto de chagas, por causa de nossos pecados e foi debilitado por causa de nossos crimes: o castigo que nos educa para a paz caiu sobre ele e nós fomos curados graças às suas chagas. (6) Todos, como ovelhas, andávamos extraviados; o homem se tinha desviado de sua trajetória. (7) O Senhor o entregou em resgate por nos¬sos pecados e ele não abriu a boca diante dos maus tratos. Como cordeiro, foi conduzido ao matadouro, e, como ovelha, diante do tosquiador permaneceu calado, não abriu a boca. Na humilhação foi levantada sua condenação. (8) Quem anunciava sua geração? pois sua vida será tirada da terra. (9) Por causa das iniqüidades de meu povo é ele conduzido à morte. (10) E eu darei os maus como reféns de sua sepultura e os ricos em troca da sua morte, pois não cometeu mal algum e em sua boca não se encontrou dolo. E o Senhor quer purificá-lo de sua ferida. (11) Se oferecerdes sacrifício por vosso pecado, vossa alma verá uma descendência de longa vida. (12) O Senhor quer tirar o tormento de sua alma, mostrar-lhe luz e formá-lo na consciência, justificar o justo que serviu bem a muitos: ele próprio há de tomar sobre si os pecados deles. (13) Por isso terá como herança multidões e distribuirá os troféus dos poderosos pelo fato de sua alma ser entregue à morte e ele ter sido enumerado entre os ímpios. (14) E ele próprio suportou os pecados de muitos e se entregou pelos pecados deles» [Is 53, 1-12]. (15) Ele próprio ainda diz: «Eu porém não passo de um verme, não sou homem, opróbrio sim dos homens e rebutalho do povo. (16) Todos os que me viram zombaram de mim, murmuraram com os lábios e menearam a cabeça [cf Mt 27,39]. Confiou no Senhor, que o livre; salve-o, pois lhe quer bem» [Sl 21, 7-9; cf Mt 27,43]. (17) Vede, amados, que modelo nos foi dado! [cf 1Ped 2,21] Se o Senhor assim se humilhou, que faremos nós que chegamos por Ele ao jugo de sua graça.


17 – (1) Tornemo-nos imitadores daqueles que em peles de carneiros e ovelhas percorriam a terra [vestes proféticas = Heb 11,37], anunciando a chegada de Cristo [cf At 7,52]: pensamos em Elias e Elizeu, ainda em Ezequiel, os profetas, e além disso naqueles que receberam testemunho favorável. (2) Recebeu magnífico testemunho Abraão, sendo proclamado amigo de Deus. Ainda assim, contemplando a glória de Deus, confessou em sua humildade: «Eu por mim sou terra e cinza» [Gen 18,27]. (3) Também sobre Jó desta forma se escreveu: Jó porém «era justo e irrepreensível, verdadeiro, temente a Deus, afastado de todo o mal» [Jó 1,1]. (4) Apesar disso, ele próprio se acusa, dizendo: «Ninguém é isento de impureza, mesmo que sua vida só fosse de um dia» [Jó 14, 4-5]. (5) Moisés foi chamado «Fiel servidor em toda a casa de Deus» [Nm 12,7; Heb 3,2.5] e pelo ministério dele castigou Deus o Egito com pragas e sofrimentos. Mas também ele, embora tão magnificamente exaltado, não se excedeu em termos grandiloqüentes, mas falou, ao chegar-lhe o oráculo da sarça: «Quem sou eu, para me enviares? [Ex 3,11] Tenho voz fraca e dificuldade para falar» [Ex 4,10]. (6) E novamente assim fala: «Não passo de vapor que se esvai da marmita» [citação – provável – do apócrifo “assunção de Moisés”].


18 – (1) Que dizer de Davi e seu testemunho? A ele falou Deus: «Descobri um homem segundo o meu coração, Davi filho de Jessé, em eterna misericórdia eu o ungi» [1Rs 13,14; Sl 88,21; cf Is 54,8; At 13,22]. (2) Mas também ele fala para Deus: «Tem pena de mim, ó Deus, segundo a tua grande piedade e segundo a multidão de tuas misericórdias apaga o meu pecado. (3) Lava-me sempre mais de minha iniqüidade e purifica-me de meu pecado; pois conheço a minha injustiça e o meu pecado está sempre diante de mim. (4) Pequei contra ti somente e pratiquei o que e mau a teus olhos; para que estejas justificado em tuas pa-lavras e venças, se te julgarem. (5) Eis que fui concebi¬do em iniqüidades e no pecado minha mãe me levou em seu seio. (6) Eis que amaste a verdade; me revelas¬te os mistérios obscuros de tua sabedoria. (7) Hás de aspergir-me com hissopo e serei purificado; hás de lavar-me e tornar-me-ei mais alvo que a neve. (8) Hás de fazer-me ouvir o som da alegria e da festa e rejubilarão os ossos humilhados. (9) Afasta o rosto de meus pecados e apaga todas as minhas iniqüidades. (10) Cria um coração puro em mim, ó Deus, e forma um espírito firme em meu peito. (11) Não me afastes de tua presença e não retires de mim o teu espírito santo. (12) Restitui-me a alegria de tua salvação e confirma-me com um espírito magnânimo. (13) Ensinarei aos pecadores teus caminhos e os ímpios hão de converter-se para ti. (14) Livra-me de ações sanguinárias, ó Deus, Deus de minha salvação. (15) Minha língua exaltará a tua justiça. Senhor, hás de abrir-me a boca e meus lábios anunciarão o teu louvor. (16) Se tivesses desejado um sacrifício, tê-lo-ia oferecido; não te agradas porém de holocaustos. (17) Sacrifício para Deus é um espírito arrependido; e não desprezará Deus um coração contrito e humilhado» [Sl 50, 3-19].


19 – (1) A humildade e modéstia de homens tão grandes e tão santos, de tal forma aprovados pela sua obediência, não só nos tornaram melhores a nós mas também as gerações que nos precederam, os que recebe¬ram as palavras d’Ele em temor e verdade. (2) Depois de assim participarmos de muitas, grandes e gloriosas ações, corramos para a meta de paz que nos foi pro¬posta desde o início; fixemos nosso olhar sobre o pai e criador de todo o mundo e agarremo-nos aos seus magníficos e excelsos dons da paz e benefícios. (3) Olhe¬mos para ele em espírito e consideremos com os olhos da alma sua generosa vontade: Reconheçamos quanto é indulgente para com toda a Sua criação.


20 – (1) Os céus movem-se por Sua disposição e se lhe submetem em paz. (2) O dia e a noite percorrem a trajetória por Ele marcada, sem jamais se impedirem mutuamente. (3) Sol e lua, coros dos astros giram conforme sua determinação em harmonia e sem desvio algum pelas órbitas a eles prescritos. (4) A terra fecunda, submissa à sua vontade, nas estações próprias, traz copioso sustento a homens, animais e todos os seres vivos, sem se rebelar nem afastar da ordem por Ele in¬tencionada. (5) As profundezas insondáveis dos abismos [cf Jó 5,9; 9,10; Rom 11,33] e paragens subterrâneas inexploradas se mantêm pelas suas leis. (6) O mar imenso, encerrado segundo o seu plano nesta bacia que o contém reunido, não ultrapassa os limites [cf Gen 1,9; Jó 38,10s] os que lhe foram postos em torno. Mas, assim como se lhe ordenou, também faz. (7) Pois foi Ele quem disse: «Até aqui chegarás e tuas ondas se quebrarão em ti» [Jó 38,11]. (8) O oceano, intransponível aos homens, bem como os mundos atrás dele, ordenam-se pelas mesmas leis do Senhor. (9) As estações da primavera, verão, outono e inverno, se sucedem umas às outras em paz. (10) Os esquadrões dos ventos [cf Jó 28,25] cumprem a seu tempo o serviço deles sem desfalecer, as fontes perenes, criadas para gozo e saúde, oferecem sem interrupção os peitos para dar vida aos homens; até os mais pequeninos dentre os animais fazem suas reuniões em harmonia e paz. (11) Todas essas coisas o grande Criador e Senhor de tudo [cf Heb 11,10] as ordenou para existirem em paz e concórdia, pois deseja o bem de todas as criaturas e se mostra generoso até o excesso em relação a nós que nos refugiamos em suas misericórdias por nosso Senhor Jesus Cristo. (12) A EIe a glória e a majestade pelos séculos dos séculos. Amém [cf Heb 13,21].

21 – (1) Cuidai, amados, que seus benefícios tão numerosos não se transformem em condenação para nós, o que se dará se não nos conduzirmos dignos dele [cf Filip 1,27] e não realizarmos em concórdia o que é bom e agradável a seus olhos. (2) Pois diz em alguma parte: «O Espírito do Senhor é uma lanterna que penetra até aos compartimentos do coração [Prov 20,27]. (3) Consideremos quanto está próximo [cf Sl 33,19], e que nada do que pensamos, nada do que calculamos lhe permanece oculto. (4) Justo, pois, que não desertemos de sua vontade. (5) Prefiramos chocar a homens tolos e insensatos, exaltados e enfatuados na arrogância de seus discursos, do que a Deus. (6) Reverenciemos o Senhor Jesus, cujo sangue foi derramado por nós; respeitemos nossos chefes; honremos os anciãos [cf 1Tim 5,17]; eduquemos os jovens no temor de Deus [cf Sl 33,12; Prov 15,33; Ecli 1,27; Ef 6,4]; conduza¬mos nossas mulheres para o bem. (7) Manifestem elas o atrativo na pureza, a intenção pura na suavidade; pelo silêncio tornem patente a moderação de seu linguajar; o amor não dependa das inclinações, mas que se pra¬tique santamente e de modo igual em relação a todos os que temem a Deus [cf 1Tim 2, 9-15; 3,11; 1Ped 3, 1-4]. (8) Nossos filhos participem da educação em Cristo; aprendam quanto pode a humildade junto a Deus, quanto consegue junto a Deus o amor puro, como o temor dele é bom e excelso e salva a to¬dos os que nele vivem santamente em pura intenção. (9) Pois é Ele que perscruta nossos pensamentos e desejos [cf Heb 4,12]; o sopro d’Ele é que está em nós; e há de retirá-lo quando quiser [cf Gen 2,7; Sl 103,29; Prov 24,12].


22 – (1) A fé em Cristo garante todas essas coisas: pois é Ele mesmo quem pelo Espírito Santo assim nos convida: Vinde filhos, escutai-me, hei de ensinar-vos o temor do Senhor. (2) Quem é o homem que quer vida, que aprecia ver dias bons? (3) Guarda tua língua do mal e teus lábios de falar traição. (4) Afasta-te do mal e faze o bem. (5) Procura a paz e persegue-a. (6) Os olhos do Senhor estão voltados para os justos e os ouvidos dele pa¬ra as suas súplicas; mas a face do Senhor se volta contra os que praticam o mal, para destruir da terra a memória deles [Sl 33, 12-18]. (7) Clamou o justo e o Senhor o atendeu e de todas as tribulações o livrou. (8) Muitos são os flagelos do pecador, enquanto que a misericórdia cercará os que no Senhor esperam [Sl 31, 10; 33, 12-18].


23 – (1) O Pai todo misericordioso e benévolo tem entranhas para os que temem a Ele e distribui benigna e amorosamente suas graças aos que a ele se achegam com coração simples. (2) Não hesitemos por isso, nem tampouco se enfatue nossa alma por causa de seus dons magníficos e ricos. (3) Jamais se aplique a nós a passagem da Escritura em que se diz: Infelizes os de coração hesitante e alma desconfiada [cf Tgo 1,8; 4,8], aqueles que dizem: Tais promessas já ouvimos no tempo de nossos pais e eis que envelhecemos e nada disso nos aconteceu. (4) Ó estultos, comparai-vos a uma árvore! Reparai na videira: primei¬ro, perde as folhas, então é que brota, em seguida vem a folha, então a flor, e, depois disso, a uva verde segui¬da da uva madura. Considerai como em pouco tempo o fruto da árvore chega à maturação. (5) É bem assim que a vontade de Deus se cumpre em ritmo acelerado e inesperado, como já a Escritura no-lo atesta: «Virá logo e não tardará; subitamente o Senhor entrará em seu Santuário, o Santo a quem esperais» [Is 14,1; Mal 3,1; Hab 2,3; Heb 10,37].
24 – (1) Observemos, amados, como o Senhor não cessa de dar-nos provas contínuas de que a ressurreição futura se realizará; dela nos deu as primícias ressuscitando a Jesus Cristo dos mortos [cf At 2,24; Rom 4,24; 1Cor 15,15.20-23; Gál 1,1; Col 1,18; 2,12; 1Ped 1,21]. (2) Vejamos, amados, como se desenrola a ressurreição a seu tempo. (3) O dia e a noite nos manifestam a ressurreição: dorme a noite, ressuscita o dia; o dia se retira, chega a noite. (4) Exemplifiquemos com os frutos da terra: como e de que mo¬do se faz a sementeira? (5) Saiu o semeador [Mt 13,3; Mc 4,3; Lc 8,5] e espalhou pela terra lavrada semente por semente: umas caindo secas e fluas, na terra, aí se desfizeram: então, desta decomposição, a providência grandiosa do Senhor as ressuscita. De uma, aumentam para muitas e produzem fruto.


25 – (1) Consideremos o sinal prodigioso que se dá nas terras orientais, isto é, nas regiões em torno da Arábia. (2) Pois existe um pássaro, chamado fênix [Mitologia – citado para demonstrar um paralelismo com a ressurreição]; é único na espécie e vive quinhentos anos. Quando então já está para dissolver-se na morte, faz para si sua própria sepultura de incenso, mirra e demais plantas aromáticas e, completado o tempo, aí se introduz e morre. (3) De sua carne em decomposição nasce unia larva, que se alimenta com a matéria em putrefação do animal morto e cria asas: depois de tornar-se forte, levanta aquela sepultura, onde se acham os restos de seu ancestral, carregando a este, voa da terra da Arábia até à cidade do Egito que se chama Heliópolis. (4) E em plena luz do dia, aos olhos de todos, se transporta até ao altar do sol, depõe aí aqueles restos e retoma o vôo de volta. (5) Os sacerdotes então examinam os calendários e verificam que ele acabou por chegar depois de preencher os quinhentos anos.

26 – (1) Havemos então de considerar grandioso e estranho o fato de o Criador operar a ressurreição de todos aqueles que lhe serviram santamente na confiança de uma fé boa, se ele ilustra até por um pássaro a grandeza de sua promessa? (2) Pois lê-se em alguma parte: «Hás de ressuscitar-me e eu te louvarei» [cf Sl 27,7 – texto grego]. E: «Deitei-me e adormeci» [Sl 3,6]; «levantei-me, porque tu estás comigo» [Sl 22,4]. (3) E Jó adverte de novo: «Ressuscitarás minha carne que suportou todo esse sofrimento» [Jó 19,26].

27 – (1) Que nossas almas se prendam pois por urna esperança assim àquele que é fiel em suas promessas [cf Sl 144, 13; Heb 10,23; 11,11] e justo em seus juízos. (2) O que proibiu de mentir, tanto menos há de mentir ele próprio, pois nada junto a Deus é impossível, a não ser mentir [cf Heb 6,18]. (3) Que se acenda pois novamente a fé nele dentro de nós, e reconheça¬mos que todas as coisas estão próximas a ele. (4) Com uma palavra de sua grandeza estabeleceu o todo, e com uma palavra pode destruí-lo. (5) Quem diria a Ele: «Que fizeste?», e quem resistiria à força de seu poder? [Sab 11,22; 12,12] Fará tudo quando e como quiser; nem unia só das coisas que ordenou há de passar [cf Mt 5,18; 24,35]. (6)Tudo está presente a seus olhos e nada escapa à sua determinação. (7) Pois os céus anunciam a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de Suas mãos. O dia comunica ao dia a façanha, e a noite transmite à noite o conhecimento dela. Não há palavras nem discursos em que se não escutem suas vozes [Sl 18, 2-4].

28 – (1) Uma vez que vê tudo e tudo ouve, temamos a ele e abandonemos os maus desejos das ações torpes, para nos pouparmos por sua piedade dos juízos futuros. (2) Para onde mesmo poderia alguém de nós fugir de sua mão forte? Que mundo receberia aquele que desertasse dele? Pois diz em algum lugar a Escritura: (3) Para onde fugirei e onde me esconderei de tua face? Se subir ao céu, lá estás; se me vou até às extremidades da terra, lá está a tua direita; se me lanço nos abismos lá está o teu espírito [Sl 138, 7-10] (4) Para onde pois poderia alguém ir, para onde escapar daquele que tudo envolve?


29 – (1) Aproximemo-nos pois dele com alma santa, levantando mãos puras imaculadas a ele, amando o nosso Pai bondoso e misericordioso, o qual nos admitiu como herdeiros. (2) Pois assim está escrito: «Quando o Altíssimo distribuiu a herança aos povos, na hora de disseminar os filhos de Adão, estabeleceu territórios pa¬ra os povos segundo a multidão dos anjos de Deus. Tornou-se herança do Senhor o povo de Jacó e sua partilha foi Israel [Dt 32, 8-9]. (3) E em outra parte se diz: Eis que o Senhor toma para si um povo do meio dos povos, assim como um homem toma as primícias de sua eira e deste povo há de proceder o santo dos santos [Nm 18,27; Dt 4,34; 14,2; Ez 48,12].


30 – (1) Uma vez que formamos a porção santa, façamos tudo o que leva à santificação [cf 1Ped 1,15s]; fujamos da maledicência, abraços impuros e impudicos, bebedeiras e a novidade das modas, cobiças abomináveis, adultério odioso e soberba hedionda [são os vícios, mas não correspondem com Rom 1, 28-32]. (2) Pois Deus, como se lê, resiste aos soberbos, dá porém graça aos humildes [Prov 3,34; Tgo 4,6; 1Ped 5,5]. (3) Unamo-nos pois àqueles a quem Deus dá a graça: revistamo-nos da concórdia, sejamos humildes continentes, mantendo-nos distante de toda murmuração e calúnia, justificando-nos antes por obras que por palavras. (4) Pois assim se diz: Quem muito fala terá resposta. Que homem, sendo loquaz, imaginaria que por isso já fosse justo? [Jó 11, 2-3] (5) Feliz o homem, nascido de mulher, que vive pouco. Não te tornes pródigo em palavras. (6) Nosso louvor venha de Deus e não de nós [cf Rom 2,29; 1Cor 4,5]. Deus odeia o que se louva a si mesmo. (7) O testemunho de nossa boa ação seja dado por outros, como também aconteceu aos nossos pais que foram justos. (8) A arrogância, a presunção, a audácia assentam naqueles que foram malditos por Deus; a discrição, a humildade e a mansidão moram junto aos que foram abençoados por Deus.


31 – (1) Aspiremos pois à bênção dele e vejamos quais os caminhos para a bênção. Retomemos os aconteci¬mentos desde o início. (2) Por que foi abençoado nosso pai Abraão? Não teria sido, porque praticou a justiça e a verdade pela fé? [Gen 12,2s; 18,18; cf Rom 4,1-3; Gál 3,6-9.14; Tgo 2,21ss] (3) Isaque, conhecendo o porvir, cheio de confiança, deixou-se levar alegremente ao sacrifício [Gen 22,7ss]. (4) Jacó abandonou humildemente a terra, por causa de seu irmão, e partiu para junto de Labão, e aí viveu como servo, sendo-lhe dado os doze cetros de Israel [Gen 28s].


32 – (1) Se alguém refletir sobre cada uma dessas coisas com sinceridade, reconhecerá a magnificência dos dons de Deus a Jacó. (2) É dele [Jacó] que procederão os sacerdotes e levitas todos, que servirão ao altar de Deus; dele, o Senhor Jesus, segundo a carne [Rom 9,4s]; dele, através de Judas, os reis, príncipes e chefes [cf Gen 49,10]. Por sua vez, os demais cetros de Jacó também gozarão de não pouca honra, já que Deus anunciou: «Tua descendência será numerosa como as estrelas do céu» [Gen 15,5; 22,17; 26,4]. (3) Todos assim chegaram à glória e grandeza, não por si mesmos ou por suas obras ou pela justiça que teriam pra¬ticado, mas por vontade dele. (4) Assim igualmente nós, que fomos chamados pela vontade dele em Cristo Jesus, não nos justificamos por nós próprios nem por nossa sabedoria [cf Is 29,14; 1Cor 1,19] ou inteligência, pela piedade ou obras que tivéssemos praticado na santidade de coração, mas através da fé [cf Rom 3,28.30; Gál 2,16; 3,8; Ef 2,8s; 2Tim 1,9; Tito 3,5ss], pela qual o Deus todo-poderoso a todos justificou desde sempre: a Ele, a glória pelos séculos dos séculos. Amém [cf Rom 11,36; 16,27].


33 – (1) Que faremos pois, irmãos? Renunciaríamos à prática do bem e desertaríamos do amor? Não permita o Senhor jamais que isso se dê conosco. Havemos de esforçar-nos antes por cumprir toda a obra boa [2Cor 9,8; Col 1,10; 1Tim 5,10; 2Tim 2,21; 3,17; Tito 1,16; 3,1] com disponibilidade entusiástica. (2) Pois o próprio Criador e Senhor de tudo se regozija com suas obras. (3) Foi Ele que firmou os céus com poder soberano e os ornamentou com sabedoria inesgotável. Separou ainda a terra da água que a cerca e a assentou sobre a firmeza de sua própria vontade; aos animais que a povoam chamou por sua ordem à existência; ao mar e aos seres que no mar vivem ele os fez e os encerrou aí com seu poder. (4) Além de tudo isso, plasmou ele com mãos santas e puras a mais excelente, a maior de suas obras, o homem, imprimindo-lhe os traços de sua própria imagem. (5) Pois foi assim que falou Deus: «Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. E criou Deus o homem, varão e mulher os criou» [Gen 1,26ss]. (6) Quando enfim havia terminado todas essas suas obras, achou-as boas, abençoou-as e disse: Crescei e multiplicai-vos [Gen 1,22.28]. (7) Re¬paremos: os justos todos se exornaram de boas obras e o próprio Senhor teve prazer em ornar-se com obras boas. (8) Uma vez que possuímos tal exemplo [cf 1Ped 2,21], procuremos submeter-nos sem tardar à sua vontade: com todas as forças, pratiquemos as obras da justiça.


34 – (1) O bom operário aceita sem inibição o pão que ganhou com seu trabalho; o preguiçoso e negligente [Ecli 4,29] foge ao olhar de seu senhor. (2) É pois necessário que estejamos dispostos para as boas obras: pois é d’Ele que tudo deriva [Rom 11,36; 1Cor 8,6]. (3) Efetivamente assim nos preveniu: «Eis o Senhor! Sua recompensa está diante dele, para retribuir a cada qual segundo a sua obra! [Sl 61,13; Prov 24,12; Is 40,10; 62,11; Mt 16,27; Apoc 22,12] (4) Exorta-nos pois a confiarmos de todo coração nele e não sermos nem preguiçosos, nem indolentes para nenhuma obra boa [2Cor 9,8; Col 1,10; 1Tim 5,10; 2Tim 2,21; 3,17; Tito 1,16; 3,11]. (5) Nossa glória e nossa segurança estão nele [cf 1Rs 2,10; Jer 9,22s; Rom 2,17; 4,2; 5,11; 1Cor 1,31; 2Cor 10,17]; submetamo-nos à sua vontade; pensemos no grande número de seus anjos, como estão prontos para servirem à sua vontade. (6) Pois diz a Escritura: «Milhares e milhares estavam diante dele e centenas de milhares o serviam e clamavam: Santo, santo, santo, o Senhor dos exércitos, cheia está toda a criação de sua glória» [Is 6,3; Dan 7,10; cf Apoc 4,8; 5,11]. (7) Também nós, reunidos em harmonia [cf At 1,15; 2,1; 1Cor 11,20; 14,23], com a mesma finalidade, conscientes de nosso dever, clama-mos a ele sem nos cansarmos, em uníssono, para nos tornarmos participantes das grandes e magníficas promessas dele. (8) Pois diz ele: «Olho algum viu e ouvido algum escutou e em coração humano algum penetrou o que de grande Deus preparou aos que confiam nele» [Is 64,4; 1Cor 2,9].


35 – (1) Como são ricos e admiráveis os presentes de Deus, meus amados! (2) Vida em imortalidade, esplendor em justiça, verdade em liberdade, fé em confiança, continência em santidade! E tudo isso chegou ao nosso conhecimento. (3) O que pois não há de estar preparado para os que nele esperam? O Criador e Pai dos séculos, o Santíssimo mesmo conhece a grandeza e beleza de seus dons. (4) Lutemos conseqüentemente, para sermos contados em o número dos que nele esperam, para nos tornarmos partícipes de seus dons prometidos [cf Tgo 1,12]. (5) Co¬mo porém há de dar-se isso, amados? Fixando nossa mente com confiança em Deus, procurando o que lhe é muito agradável e aceito, cumprindo o que convém à sua santa vontade, seguindo pelo caminho da verdade [cf 2Ped 2,2], afastando de nós toda a injustiça e maldade, ambição, dissensões, malignidade e dolos, murmurações e difamações inimizade de Deus, soberba e jactância, vaidade e falta de hospitalidade. (6) Os que praticam tais obras in¬correm no ódio de Deus, não só os que as praticam, mas também os que as aprovam [cf Rom 1,28-32]. (7) Diz efetivamente a Escritura: «Ao pecador porém disse Deus: Para que fim, explicas tu os meus mandamentos e te pronuncias sobre a minha aliança? (8) Detestaste a disciplina e deixaste para trás minhas palavras. Na hora em que vias um ladrão corrias com ele e entravas em combinação com os adúlteros. Tua boca tu a enchias de malícia e tua língua urdia enganos. Calmamente, difamavas o teu irmão e entregavas ao escândalo o filho de tua mãe. (9) Era o que fazias, enquanto eu me calava; supunhas, ímpio, que sou semelhante a ti. (10) Hei de confundir e obrigar-te a ver-te de frente. (11) Compreendei afinal estas coisas, vós que esqueceis a Deus, para que não vos arrebate como um leão e já não se encontre quem vos liberte [cf Sl 7,3]. (12) Um sacrifício de louvor me há de glorificar, e aí está o caminho no qual lhe mostrarei a salvação de Deus [Sl 49, 16-23].

36 – (1) É este o caminho [cf “caminho” Didaqué 1,1] amados irmãos, no qual encontramos a nossa salvação [cf Is 40,5; Lc 2, 30; 3,6; At 28,28], Jesus Cristo, o sumo sacerdote de nossas oferendas, o protetor e auxílio em nossa fraqueza [cf Rom 8,26; Heb 2,17s; 3,1; 4,14s]. (2) Por ele, olhamos para o alto dos céus; através dele descobrimos a face imaculada e soberana de Deus [cf 2Cor 3,18]; através dele abriram-se os olhos de nosso coração [Ef 1,18]; através dele nossa inteligência obtusa e obscurecida [cf Rom 1,21; Ef 4,18] se abre ao encontro da luz [cf 1Ped 2,9]; através dele o Senhor quis que saboreássemos do conhecimento imortal: «Ele, sendo o esplendor de sua grandeza, é tanto maior que os anjos, quanto recebeu em herança um nome superior ao deles» [Heb 1,3s]. (3) Pois assim é que está escrito: «O que fez os ventos serem seus anjos e as chamas de fogo seus servos» [Sl 103,4; Heb 1,7]. (4) A respeito de seu filho assim falou o Senhor: «Meu filho és tu, eu hoje te gerei: pede-me e eu te darei as nações como herança e os confins da terra como possessão» [Sl 2,7-8; At 13,33; Heb 1,5]. (5) E outra vez lhe diz: «Senta-te a minha direita, até que ponha teus inimigos para escabelo de teus pés» [Sl 109,1; Heb 1,13]. (6) Quem seriam então esses inimigos? Os maus e os que se opõem à vontade dele.

37 – (1) Militemos, pois, irmãos, com todo entusiasmo sob suas ordens indiscutíveis [Falta disciplina na comunidade de Corinto.. cf 2Cor 10,3s; Ef 6,10-17; 1Tim 1,18; 2Tim 2,3s]. (2) Reparemos nos sol¬dados alistados sob as bandeiras de nossos imperadores, como cumprem as ordens com disciplina, prontidão e submissão. (3) Nem todos são comandantes, nem todos tribunos, nem centuriões, nem prepostos a cinqüenta e assim por diante, mas cada qual em seu próprio posto [1Cor 15,23] cumpre as ordens dadas pelo chefe supremo e de¬mais autoridades (4) Os grandes não podem sem os pequenos, nem os pequenos sem os grandes. Em tudo, existe alguma mistura e nela está a vantagem. (5) Exemplifiquemos com o nosso corpo: a cabeça sem os pés não é nada; nem tampouco os pés sem a cabeça. Até os mínimos membros do corpo são necessários e úteis ao corpo todo. Antes, todos conspiram e atuam em submissão unânime para salvarem o corpo todo [cf 1Cor 12,12-26].

38 – (1) Que se conserve pois inteiro o corpo que formamos em Cristo Jesus [Corpo de Jesus Cristo = Igreja (cf 1Cor 12,27; rom 12,4s; 1Cor 10,16s; Col 1,24; 2,19; Ef 4,15)], e cada qual se submeta a seu próximo [cf Ef 5,21; 1Ped 5,5], conforme o carisma que lhe foi da¬do [cf Rom 12,6ss; 1Cor 7,7; 1Ped 4,10]. (2) O forte cuide do fraco, o fraco por sua vez respeite o forte; o rico preste serviços ao pobre, e o pobre por sua vez renda graças a Deus, que lhe deu o tanto para suprir a sua falta [cf 1Cor 16,17; 2Cor 9,12; 11,9; Col 1,24; Filip 2,30]; o sábio manifeste sua sabedoria não em palavras, mas em boas obras [cf Tgo 3,13]; o humilde não dê testemunho de si mesmo, mas permita que outro o dê em favor dele; o casto em sua carne não se ensoberbeça pois sabe que é outro quem lhe dá a continência. (3) Afinal, irmãos, analisemos de que matéria fomos feitos. como e quem fomos ao entrarmos no mundo, de que túmulo e escuridão nosso plasmador e criador nos tirou [cf Sl 138,15] para nos introduzir em seu mundo, ele que preparou para nós todos os seus dons antes que nascêssemos. (4) Já que temos tudo isso dele, deve¬mos dar-lhe graças por tudo. A ele a glória pelos séculos. Amém [cf Rom 11,36; 16,27; Heb 13,21].

39 – (1) Néscios e insensatos, gente louca e inculta, zombam e se mofam de nós, querendo dar importância às suas idéias. (2) Que é que pode um mortal, qual a força de alguém que nasceu da terra? (3) Pois está escrito: «Não havia forma a meus olhos; percebi apenas um hálito e uma voz que dizia: (4) Como? haveria de ser puro um mortal diante do Senhor ou irrepreensível um homem por causa de suas obras? Se nem Deus pode confiar em seus servos e se junto a seus anjos encontrou algo de errado? (5) Nem o céu é puro diante dele [Jó 15,15]. Como então o seriam os hóspedes dos ranchos de barro, aos quais pertencemos, sendo nós do mesmo barro? Esmagou-os como verme. Entre a manhã e a noite deixam de existir; pereceram, porque não podiam ajudar-se a si próprios. (6) Soprou sobre eles e morreram, por não possuírem sabedoria. (7) Grita então! Talvez alguém te escute ou chegues a ver algum dos santos anjos. De fato, a cólera consome o tolo e o ciúme mata o que se extraviou. (8) Tenho de fato visto que alguns tolos deitam raízes, mas cedo se consumiu seu alimento. (9) Que seus filhos se mantenham distantes da salvação; que sejam desprezados às portas dos humildes e não se encontre quem os livre. O que para eles estava preparado será comida dos justos, enquanto eles não encontrarão saída para seus males» [Jó 4,16-5; 5].

40 – (1) Sendo evidentes todas essas coisas e tendo nós sondado as profundezas do conhecimento de Deus [cf Rom 11,33; 1Cor 2,10], temos que realizar segundo a ordem tudo quanto o Senhor nos mandou cumprir nos tempos determinados: (2) Mandou-nos oferecer os sacrifícios e realizar o culto [é a primeira vez que se grafa o termo Liturgia = “lait” – do grego = Povo; “ergia” – do grego = Ação], não ao acaso ou sem ordem, mas em tempos e horas marcadas [Vê-se a organização litúrgica da Igreja primitiva]. (3) Onde e por que ministros hão de ser feitos, foi Ele quem o fixou por sua decisão altíssima, para que tudo se fizesse santamente e assim fosse aceito por sua vontade. (4) Os que por conseguinte fazem as suas oferendas em tempos determinados são-lhe agradáveis e abençoados, pois seguem as determinações do Senhor e não pecam. (5) Pois ao sumo sacerdote foram confiadas funções particulares e aos sacerdotes um lugar próprio, aos levitas serviços determinados; o leigo [leigo, pela primeira vez empregado na língua grega, já significa “o homem que pertence a Deus”] está ligado pelas ordenações destinadas aos leigos.

41 – (1) Cada qual de nós, irmãos, agrade em seu posto [cf 1Cor 15,23] a Deus, vivendo em consciência boa, não transgredindo a regra de seu ofício, com toda a dignidade. (2) Nem por toda parte, irmãos, são oferecidos sacrifícios perpétuos ou votivos, de expiação e remissão, mas só em Jerusalém. E mesmo lá, não se oferece em todo lugar, mas só em frente ao santuário sobre o altar, de¬pois que a oferenda foi atenciosamente examinada pelo sumo sacerdote e seus auxiliares acima mencionados. (3) Os que praticam algo contra o que agrada a sua vontade recebem como castigo a morte [cf Lv 17; Dt 13,10s]. (4) Vede, irmãos, quanto maior o conhecimento com que somos distingui¬dos, tanto maior o perigo a que estamos expostos.

42 – (1) Os Apóstolos receberam a boa-nova em nosso favor da parte do Senhor Jesus Cristo. Jesus Cris-to foi enviado por Deus. (2) Cristo portanto vem de Deus e os Apóstolos de Cristo; esta dupla missão realizou¬se pois em perfeita ordem por vontade de Deus. (3) Munidos assim de instruções e plenamente assegurados pela ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, confiados na palavra de Deus, saíram a evangelizar na plenitude do Espírito Santo a próxima vinda do Reino de Deus. (4) Assim proclamando a palavra no interior e nas cidades, estabeleciam suas primícias [cf Rom 16,5; 1Cor 16,15 – fica clara a ordem hierárquica: Deus – Jesus – Apóstolos...], como Bispos e Diáconos, dos futuros fiéis, depois de prová-los pelo Espírito [cf At 6,3; 14,23; 1Tim 1,16; 3,10; 2Tim 2,2; Tito 1,5s] (5) E não era inovação: há séculos já a Escritura falava de Bispos e Diáconos. Pois é assim que se lê em algum lugar: «Quero estabelecer os Bispos deles na justiça e os seus Diáconos na fé» [Is 60, 17].

43 – (1) Por que estranhar que os Apóstolos, a quem Cristo confiou da parte de Deus tal obra, tenham instituído os acima mencionados? Pois até o bem-aventurado e «fiel servo em toda casa [Nm 12,7; Heb 3,2.5]», Moisés, assinalou tudo o que lhe fora ordenado nos santos livros. Seguiram-no os demais profetas, ajuntando o seu testemunho às leis por ele instituídas. (2) No momento de irromper o ciúme a respeito do sacerdócio e de se disputarem as tribos, qual delas é que deveria ornar-se com esse título glorioso, ordenou ele aos doze chefes de tribo que lhe trouxessem bastões com o nome de cada tribo neles gravada. Tomando tais bastões, atou-os, as¬sinalou-os com os anéis dos chefes e depositou-os na tenda do testemunho sobre a mesa de Deus. (3) Fechou então a tenda, selou as chaves da mesma forma que os bastões. (4) Falou-lhes então: «Irmãos, a tribo, cujo bastão brotar, a esta escolheu Deus para o sacerdócio e seu culto». (5) Ao amanhecer, reuniu todo Israel, os seiscentos mil homens, mostrou aos chefes os selos, abriu a tenda do testemunho e retirou os bastões. E aconteceu que o bastão de Aarão não só germinara, mas produzira fruto [Nm 17,16-26]. (6) Que lhes parece, irmãos? Não sabia Moisés de antemão que isso iria suceder? Sabia-o sem dúvida. Mas para que não se desse a revolta em Israel, agiu assim, e fosse glorificado o nome do Deus verdadeiro e único [cf Jo 17,3]. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

44 – (1) Também os nossos Apóstolos sabiam, por Nosso Senhor Jesus Cristo, que haveria contestações a respeito da dignidade episcopal [cf 1Tim 3,1]. (2) Por tal motivo e como tivessem perfeito conhecimento do porvir, estabeleceram os acima mencionados e deram, além disso, instruções no sentido de que, após a morte deles, outros homens comprovados lhes sucedessem em seu ministério [forte argumento contra os ataques dos inimigos da Igreja de Cristo, hoje]. (3) Os que assim foram instituídos por eles, ou mais tarde por outros homens eminentes com a aprovação de toda a Igreja, e serviram de modo irrepreensível ao rebanho de Cristo com humildade, pacífica e abnegadamente, recebendo por longo tempo e da parte de todos o testemunho favorável, não é justo em nos¬sa opinião que esses sejam depostos de seu ministério. (4) E não será pequena a nossa falta, se depusermos do episcopado aos que ofereceram, de maneira irrepreensível e santa [cf 1Tess 2,10] os sacrifícios [Eucaristia (cf Cartas de Santo Inácio de Antioquia)]. Felizes os presbíteros que nos precederam na caminhada e tiveram um fim carregado de frutos e de perfeição. Não têm a temer que alguém os remova do lugar para eles prepara¬do [fina ironia do autor contra os que tentaram depor presbíteros em Corinto]. (8) Pois vemos que vós afastastes a alguns de boa conduta de um ministério que eles honraram de modo inatacável.

45 – (1) Porfiai, irmãos, cheios de zelo, pelas coisas que levam à salvação. (2) Vós vos aprofundastes nas Sa¬gradas Escrituras, nas autênticas, naquelas que nos vêm do Espírito Santo. (3) Sabeis que elas não contêm nenhuma injustiça nem falsificação. Lá não encontrareis que homens justos foram depostos por homens santos. (4) Justos foram perseguidos, mas por pecadores; foram encarcerados, mas por ímpios; foram apedrejados, mas por transgressores da lei; foram assassinados, por homens cheios de abominável e criminoso ciúme. (5) Tais sofrimentos eles os suportam com glória. (6) Que diríamos pois, irmãos? Foi Daniel lançado para a cova por homens tementes a Deus? [cf Dan 6,15-18] (7) Ou Ananias, Azarias e Misael, foram eles lançados para a fornalha ardente por homens que praticavam excelso e glorioso do Altíssimo? De modo algum! Quem foram então os que praticaram tais coisas? [cf Dan 3,19ss] Indivíduos odiosos, cheios de to¬da maldade, se exasperaram em tal fúria, que lançaram à tortura aqueles que serviam a Deus em santa e irrepreensível intenção, não se lembrando que o Altíssimo é defensor e escudo para os que servem em consciência pura [cf 1Tim 3,9; 2Tim 1,3] a seu Nome Santíssimo. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém. (8) Os que porém perseveraram na paciência receberam em herança glória e honra, foram exaltados e inscritos por Deus no livro de memória dele, por todos os séculos dos séculos. Amém.

46 – (1) A tais exemplos temos que apegar-nos ir¬mãos. (2) Pois está escrito: Apegai-vos aos santos, por-que os que a eles se apegam serão santificados [texto de origem desconhecida, muito semelhante ao do verso seguinte]. (3) E novamente, em outra parte, se diz: Junto ao homem puro serás puro, junto ao eleito serás eleito e junto ao perverso perverter-te-ás [Sl 17,26-27]. (4) Apeguemo-nos pois aos puros e justos: são esses os eleitos de Deus. (5) Por que existem entre vós disputas, ódio, contendas, cismas [Cisma = Ruptura. Muito citada, e combatida, por S. Clemente] e guerra? [cf 1Cor 1,10; Tgo 4,1] (6) Por acaso não temos um só Deus, um só Cristo, um só Espírito [cf Mt 28,19; 1Cor 12,4ss; 2Cor 13,13] da graça derramado sobre nós, e uma só vocação em Cristo? (7) Por que separamos e despedaçamos os membros de Cristo, nos revoltamos contra o próprio corpo, e chegamos a uma demência tal, que nos esquecemos sermos membros uns dos outros? [cf Rom 12,4s; 1Cor 6,15; 8,6; 12,12s.27; Ef 4,4ss; 5,30] Lembrai-vos das palavras de Nosso Senhor Jesus. (8) Pois disse ele: Ai daquele homem: melhor lhe fora, não houvesse nascido [cf Mc 14,21; Lc 22,22], que escandalizar a um dos meus eleitos. Mais lhe valeria passar a mó em seu pescoço e afundá-lo no mar, do que perverter ele a um dos meus eleitos [Mt 18,6s; 26,24; Lc 17,1-2; cf Mc 9,42; Lc 18,6-7]. (9) Vosso cisma a muitos perverteu [grave acusação, muito atual]; lançou a muitos no desânimo; a muitos na dúvida; a nós to¬dos na tristeza. E vossa revolta se prolonga.


47 – (1) Tornai a ler a Epístola do bem-aventurado Paulo Apóstolo. (2) Que é que vos escreveu primeiro, no início do Evangelho? [Filip 4,15. Evangelho em sentido lato, como sinônimo da mensagem de Cristo (1Cor 15,1; cf a respeito 2Ped 3,15)] (3) Na verdade, estava ele inspirado pelo Espírito [cf 1Cor 2,4.10.12-15] quando vos comunicou normas sobre si próprio, sobre Cefas e Apolo, porque já então formáveis partidos [cf 1Cor 1,10ss]. (4) Mas o partidarismo de então importava num pecado menor para vós: pois vos agrupáveis em torno de Apóstolos autorizados e de um homem aprovado por eles. (5) Nesta hora, porém, refleti, quem são os que vos perverteram e como enfraqueceram o renome de vossa caridade, por toda a parte celebrada. (6) Uma vergonha, meus amigos, uma vergonha mui¬to grande e indigna de uma conduta em Cristo, ouvir-se que a Igreja dos coríntios, tão inabalável e antiga, se rebele contra os presbíteros por causa de uma ou duas pessoas. (7) E tal rumor não se alastrou apenas até nós, mas também atingiu os que alimentam outras convicções que nós [entenda-se judeus e pagãos], a ponto de se proferirem blasfêmias ao nome do Senhor [cf Is 52,5; Rom 2,24; 1Tim 6,1; Tito 2,5] por causa de vossa insensatez, e de se armar perigo para vós próprios.


48 – (1) Arranquemos pois o mais depressa esse mal, lancemo-nos aos pés do Senhor e peçamos-lhe entre lágrimas que de nós se compadeça, se reconcilie conosco e nos traga de volta a uma prática santa e pura de nossa fraternidade. (2) Pois é esta a porta da justiça, aberta para a vida, como está escrito: «Abri-me as portas da justiça; por elas quero entrar e louvar o Senhor. (3) É esta a porta do Senhor; por ela entrarão os justos» [Sl 117,19-20]. (4) Entre as muitas portas abertas, a porta da justiça é a porta de Cristo [cf Mt 7,13s; Jo 10,7.9]. Felizes todos os que entram por ela e dirigem seus passos na santidade e justiça [Lc 1,75], cumprindo todas as coisas imperturbavelmente. (5) Que alguém tenha fé, que seja capaz de expor o conhecimento, que seja sábio em discernir [cf 1Cor 12,8ss] discursos, que seja santo em suas ações. (6) Quanto maior parecer, tanto mais lhe importa ser humilde [cf Mt 18,4] e procurar o proveito de todos e não o próprio [cf 1Cor 10,24.33; 13,5; 14,26] .


49 – (1) Quem possui a caridade em Cristo [cf 2Tim 1,13] cumpra os mandamentos de Cristo [cf Jo 14,15.21.23; 15,10; 1Jo 5,1-3]. (2) O vínculo da caridade [cf Col 3,14] de Deus, quem poderia descrevê-lo? (3) Quem seria capaz de exprimir a magnificência de sua beleza? (4) A altura a que nos leva o amor é inexprimível. (5) O amor nos une a Deus, o amor cobre a multidão dos pecados [Prov 10,12; Tgo 5,20; 1Ped 4,8; cf Sl 84,3], o amor tudo suporta, o amor é em tudo magnânimo; nada há de mesquinho na caridade, nada de soberbo. A caridade não conhece cisma, a caridade não se revolta, a caridade tudo realiza em harmonia [cf 1Cor 13,4-7; Ef 4,2]; na caridade todos os eleitos de Deus chegaram à perfeição [cf Col 3,14; 1Jo 2,5; 4,18]. Sem caridade, não há nada que agrade a Deus [cf 1Cor 13,1-3]. (6) Na caridade nos acolheu o Senhor. Pela caridade que teve para conosco, Nosso Senhor Jesus Cris¬to deu o sangue dele por nós, segundo a vontade de Deus, sua carne por nossa carne, sua alma por nos¬sas almas [cf Jo 3,16; 6,51; 15,12s; Gál 1,4; 2,20; Ef 1,3-9; 1Jo 4,9s – o autor enaltece a caridade com foco na concórdia e harmonia].

50 – (1) Vede, amigos, como é grande e admirável a caridade, e como não há comentário possível de sua perfeição. (2) Quem seria capaz de chegar até ela, a não ser aqueles a quem Deus tornar dignos? Peçamos por conseguinte e supliquemos de sua misericórdia, viver¬mos na caridade sem parcialidade humana, irrepreensíveis. (3) As gerações todas desde Adão, até o dia de hoje, passaram. Mas os que foram perfeitos no amor segundo a graça de Deus tomaram posse da terra dos santos; hão de manifestar-se, quando estiver à vista o Rei¬no de Cristo. (4) Pois escrito está: Entrai para os aposentos só para um instante, até que passe minha ira e meu furor e me lembrarei do dia favorável e hei de ressuscitar-vos de vossos túmulos [Is 26,20; Ez 37,12]. (5) Somos felizes, amigos, quando cumprimos os mandamentos de Deus na harmonia da caridade, para nos serem perdoados os pecados pela caridade. (6) Pois diz a Escritura: «Felizes aqueles a quem foram perdoadas as iniqüidades e encobertos os pecados. Feliz o homem a quem Deus não imputa pecado e em cuja boca não se encontra fraude [Sl 31,1-2; Rom 4,7-9]». (7) Esta bem-aventurança diz respeito aos que foram escolhidos por Deus através de Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem se dê a glória pelos séculos dos séculos. Amém [cf Heb 13,21].

51 – (1) De nossas quedas e faltas ocasionadas pelas instigações do inimigo [cf 1Tim 5,14; 2Tess 2,4] peçamos perdão. Mas também aqueles que se arvoraram em chefes da revolta e da cisão devem considerar nossa comum esperança. (2) Pois os que vivem no temor e na caridade preferem ver-se a si próprios atormentados do que ao próximo; preferem receber censura, do que ver censurada a concórdia que nos foi legada numa tradição tão bela e tão santa. (3) Mais vale ao homem confessar publicamente suas faltas [cf Didaqué 4,14] do que endurecer o coração, como se endureceu o coração dos que se revoltaram contra o servo de Deus, Moisés [cf Nm 12,7; Sl 94,8; Heb 3,5.8.15; 4,7] e que foram castigados de maneira tão patente [cf Nm 16]. (4) Pois desceram vivos para o inferno e a morte os apascentará [Nm 16,30.33; Sl 48,15]. (5) Faraó, seu exército e todos os chefes do Egito, os carros e os que neles estavam embarcados não foram por outro motivo lançados ao Mar Vermelho. Aí pereceram, porque endureceram seus corações [cf Rom 1,21] insensatos, após os sinais e milagres realizados no Egito [Ex 7,3; At 7,36] pelo servo de Deus, Moisés [cf Ex 14,23-28; Nm 12,7; Heb 3,5].


52 – (1) Irmãos, de nada em absoluto necessita o Senhor; de ninguém nada precisa, a não ser que o confessem. (2) Pois diz Davi, o eleito: «Hei de exaltar o Senhor e isso lhe agradará mais do que um novilho que ostente cornos e patas: que o vejam os pobres [pobres, na perspectiva do autor, levando em conta o fim desta mensagem, são os pecadores que necessitam de penitência] e rejubilem» [Sl 68,31-33]. (3) E novamente: «Oferece a Deus um sacrifício de louvor e cumpre teus votos ao Altíssimo; invoca-me no dia da tua tribulação, eu te livrarei e tu me renderás glória [Sl 49,14-15]. (4) Porque sacrifício para Deus é um espírito humilhado» [Sl 50,19].


53 – (1) Conheceis, e conheceis bem, as Sagradas Escrituras, caríssimos, e vos aprofundastes nos oráculos de Deus. É pois unicamente para recordar-vos, que isto escrevemos. (2) Quando Moisés subiu a montanha e aí passou quarenta dias e quarenta noites em jejum [cf Ex 34,28; Dt 9,9] e humildade, Deus lhe falou: «Desce depressa daqui, por¬que teu povo pecou, pecaram aqueles que conduziste para fora do Egito; afastaram-se logo do caminho que lhes prescreveste e fizeram para si ídolos de metal [Dt 9,12; cf Ex 32,7-8]. (3) E o Senhor ainda acrescentou: Eu to disse uma vez e novamente o digo: Vi este povo, e, repara, é dura sua cerviz. Deixa-me exterminá-los, apagarei o nome deles debaixo do céu, e farei de ti uma nação grande e admirável, mais numerosa que esta. (4) Respondeu-lhe então Moisés: Não faças isso, Senhor! Perdoa o pecado a este povo, ou me tira a mim do livro dos vi¬vos». (5) Ó grande caridade, ó perfeição insuperável! O servo fala com liberdade ao Senhor, exige perdão para a multidão ou implora que seja extinguido junto com eles.

54 – (1) Quem dentre vós for nobre, compassivo, cheio de caridade, (2) diga: se é por minha causa que há re¬volta, discórdia e cisma, eu me retiro, parto para onde quiserdes e faço o que for proposto pela comunidade; contanto somente que o rebanho de Cristo viva em paz com os presbíteros constituídos. (3) Quem assim agir há de adquirir grande glória em Cristo e em toda par¬te será recebido, «pois do Senhor é a terra e sua plenitude» [Sl 23,1]. (4) Isso fizeram e fazem os que andam pelo caminho de Deus que não deixa remorsos.

55 – (1) Mas para tomarmos também exemplos dentre os gentios: muitos reis e príncipes, ao surgir alguma peste, se entregaram por inspiração de algum oráculo a si próprios à morte [casos comuns na região de Corinto], para salvarem pelo seu sangue os cidadãos; muitos se retiraram de suas cidades, para que a sedição não se estendesse. (2) Conhecemos a muitos dentre os nossos [isto é, cristãos de Roma. Cf cap 6,1 deste escrito] que se entregaram a si mesmos às cadeias, para resgatarem a outros; mui¬tos se entregaram à escravidão e com o dinheiro assim recebido, sustentaram os demais.(3) Muitas mulheres, fortalecidas pela graça de Deus, realizaram numerosas obras viris. (4) Judite bem-aventurada, durante o cerco da cidade, pediu dos presbíteros a permissão de sair para o acampamento dos estrangeiros. (5) Expondo-se ao perigo, saiu por amor à Pátria e ao povo cercado. E o Senhor entregou Holofernes na mão de uma mulher [cf Jdt 8,13]. (6) Ester, perfeita na fé, expôs a si própria a um perigo não menor, para salvar as doze tribos de Israel da iminência da morte. Pelo jejum e a humilhação [cf Est 4,16], suplicou ao Senhor onividente, Deus dos séculos. Este, vendo a humildade de sua alma, salvou o povo, em favor de quem ela se expusera ao perigo [cf Est 7s].



56 – (1) Supliquemos pois também nós pelos que vi¬vem em pecado: recebam doçura e humildade, para não cederem a nós, mas à vontade de Deus [cf 1Cor 7,10]. Assim se tornará frutífera e perfeita a lembrança misericordiosa que deles tivemos diante de Deus e dos santos [a memória dos santos mártires já era honrada, e porque não, nas orações e fração do Pão – Eucaristia – lembrada e venerada]. (2) Aceitemos a correção fraterna, a qual, muito amados, ninguém deve levar a mal. A exortação que nos damos uns aos outros é boa e sobremaneira útil. Une-nos ela à vontade de Deus. (3) Pois é assim que reza a Escritura Santa: «Castigou e tornou a castigar-me o Senhor, e não me entregou à morte [Sl 117,18]. (4) A quem o Senhor ama, castiga e açoita a todo aquele que toma como filho [Prov 3,12; Heb 12,6; Apoc 3,19]. (5) Há de castigar-me, continua o texto, como justo em misericórdia e há de corrigir-me; enquanto isso, óleo algum de pecadores unja a minha cabeça [Sl 140,5]. (6) E nova¬mente fala: Feliz o homem que o Senhor corrigiu. Não recuses a repreensão do todo-poderoso! Pois ele faz sofrer e novamente restabelece. (7) Bateu e suas mãos curaram. (8) Seis vezes há de arrancar-te às dificuldades, na sétima o mal não te atingirá. (9) Na fome preservar-te-á da morte, na guerra do fio da espada. (10) Por-te-á ao abrigo do açoite da língua, não temerás males vindouros. (11) Hás de rir-te dos injustos e maus, não temerás animais selvagens. (12) Até animais selvagens viverão em paz contigo. (13) Hás de ver então que tua casa gozara de paz e não faltará comida em tua tenda. (14) Hás de ver que tua descendência será grande e os teus filhos como a erva miúda do campo. (15) Hás de descer ao túmulo como trigo amadurecido, colhido na hora certa, ou como a meda de feno da eira enfeixada no dia aprazado» [Jó 5,17-26]. (16) Vedes, caríssimos, quão grande a proteção para os que aceitam os corretivos do Senhor; pois nos corrige como bom pai, para encontrarmos misericórdia por sua santa correção.


57 – (1) Vós pois que destes origem à revolta submetei-vos aos presbíteros [cf 1Ped 5,5] e deixai-vos corrigir até a conversão, dobrando os joelhos de vossos corações. (2) Aprendei a submeter-vos, depondo a arrogante e orgulhosa jactância de vossa língua: pois é melhor para vós encontrar-vos no rebanho de Cristo, como peque¬nos e escolhidos, do que serdes superestimados mas excluídos de sua esperança. (3) Pois é assim que se ex¬prime a santíssima sabedoria: «Eis que hei de anunciar-vos a palavra de meu espírito; dar-vos-ei a conhecer o meu discurso. (4) Uma vez que chamei e não escutastes; me prolonguei e não destes atenção, antes negligenciastes meus conselhos e fizestes pouco caso de minhas admoestações, por isso também eu hei de rir-me de vossa perda, hei de zombar na hora em que vier vossa ruína e quando se abater sobre vós de re¬pente o tumulto, a catástrofe semelhante a uma tempestade, ou quando vos visitar a tribulação e angústia. (5) Então se dará o caso de me invocardes. Eu porém não vos escutarei. Pecadores irão à minha pro¬cura e não me encontrarão. Pois odiaram a sabedoria, não estimaram acima de tudo o temor do Senhor, não quiseram dar atenção aos meus conselhos, mofaram de minhas admoestações. (6) Por isso comerão os frutos de seus erros e saciar-se-ão de sua própria impiedade. (7) Serão mortos em troca do mal que infligiram aos humildes; o julgamento há de aniquilar os ímpios. Aquele porém que me escuta habitará sua tenda, confiado na esperança, e viverá em paz sem recear mal algum» [Prov 23,23-33; Ecli 4,16].

58 – (1) Obedeçamos pois a seu Nome todo santo e glorioso; fujamos das ameaças que a sabedoria dirige contra os insubmissos, para que possamos estabelecer nossa tenda confiados no Nome santíssimo de sua majestade. (2) Aceitai nosso conselho e não vos arrependereis! Pois Deus é vivo, e vivo também o Senhor Jesus Cristo e o Espírito Santo [clara evidência de uma citação litúrgica do primeiro século], vivas são a fé e a esperança dos eleitos no sentido de aqueles que praticarem na humildade, com mansidão perseverante e sem hesitação, os mandamentos e preceitos de Deus, serem arrolados e se enfileirarem em o número dos que serão salvos por Jesus Cristo, pelo qual se lhe rende glória pelos séculos dos séculos. Amem [cf Rom 11,36; 16,27; Heb 13,21].


59 – (1) Se porém alguns não obedecerem ao que por nós foi dito saibam que se envolverão em pecado e perigo não pequeno. (2) Nós porém seremos inocentes deste pecado e pediremos em súplica e oração instante [início da mais antiga Oração dos Fiéis da História do Cristianismo] o Criador de tudo queira conservar intacto o número dos que foram contados entre os escolhidos dele em todo mundo, por seu Filho muito amado Nosso Senhor Jesus Cristo [cf Mt 12,18; At 3,13-26; 4,27.30], pelo qual nos chamou das trevas para a luz, da ignorância para o conhecimento da glória de seu nome [Is 42,16; At 26,18; 1Ped 2,9]. (3) Ensinou-nos ele a esperar em teu nome, princípio de toda criatura. Tu que nos abriste os olhos do coração para te conhecermos, ao único Altíssimo nas alturas, santo que repousa entre santos [Is 57,15; Ef 1,18]:

Tu que rebaixas o orgulho dos soberbos [Is 13,11],
Que desfazes os cálculos das nações [Sl 32,10],
Que exaltas os humildes e humilhas os que se exaltam [Jó 5,11; cf Mt 23,12],
Que distribuis a riqueza e a pobreza [1Rs 2,7],
Que fazes morrer e levas à vida [Dt 32,39; cf 1Rs 2,6; 4Rs 5,7],
Que és o único benfeitor dos espíritos e Deus de toda carne [Nm 16,22; 27,16; cf Heb 12,9],
Que perscrutas os abismos [Dan 3,55] e controlas as obras dos homens,
Que és socorro nos perigos e Salvador no desespero [Jdt 9,11 – texto grego],
Criador e bispo [“episcopos” = inspetor, supervisor, responsável] de todo espírito, Tu que multiplicas as raças sobre a terra [cf Jó 10,12; Is 57,16; Am 4,13; Zac 12,1], E dentre todas escolhes os que te amam, por Jesus Cristo, teu Filho amado, pelo qual nos ensinaste, santificaste e glorificaste [cf Jo 12,26; 17,17; 1Cor 1,2; Tito 2,11s; 1Ped 2,6s]. (4) Mestre, nós te pedimos, torna-te nosso socorro e nosso protetor [Jdt 9,11 – texto grego; Sl 118,114].
Salva entre nós os oprimidos.
Levanta os caídos [cf Sl 144,14].
Mostra-te aos que rezam.
Cura os fracos [cf Ez 34,4.16].
Aos que erram dentre teu povo leva ao bom caminho.
Sacia os que têm fome.
Liberta os nossos presos.
Levanta os fracos.
Consola os pusilânimes.
Conheçam-te todos os povos,
Porque tu és o Deus único [Ez 36,23]
E Jesus Cristo é Teu Filho [cf Jo 17,3]
E nós o Teu povo e ovelhas de Teu rebanho [Sl 78,13; 94,7; 99,3].


60 – (1) Pois Tu fizeste aparecer a harmonia eterna do cosmos, através das forças que nele operam;
Tu, Senhor, criaste a terra habitada [cf Sl 88,12s],
Tu te manténs fiel por todas as gerações [cf Dt 7,9],
Justo nos julgamentos [cf Tob 3,2; Sl 118,137],
Admirável no poder e na majestade [cf Ecli 43,29s],
Sábio ao criar e providente em sustentar o criado [cf Sl 103; 146,5],
Bom nos dons visíveis [cf Sl 72,1; 117,1-3; Mc 10,18],
Benigno para com os que em ti confiam [cf Sl 24,8, 99,5; 1Ped 2,3],
Misericordioso e compassivo [Joel 2,13; cf Sl 85,15],
Perdoas nossas iniqüidades,
Pecados, faltas e negligências.
(2) Não leves em conta todo pecado de teus servos e servas.
Antes purifica-nos, com a purificação de tua verdade [cf Nm 14,18; Jo 17,17].
Dirige nossos passos [Sl 39,3; 118,133], para andarmos na santidade do coração.
E para realizarmos o que é bom e agradável aos Teus olhos [cf Dt 12,25.28; 13,18; 21,9]
E aos olhos dos que nos governam [cf Rom 13,1-7; Tito 3,1; 1Ped 2,13-17].
Sim, Mestre, mostra-nos tua face [Ex 6,1; Nm 6,25s; Sl 30,17; 66,2; Jer 21,10] para o bem na paz,
Para nos protegeres com tua mão forte
E nos preservares de todo pecado por teu braço excelso [Dt 4,34; 5,15; 7,19; 9,26],
E nos livrares de quantos nos odeiam sem motivo [cf Sl 17,18; 37,20; 105,10; Lc 1,71].
(4) Concede-nos harmonia e paz,
A nós e a todos os habitantes da terra,
Assim como as concedestes a nossos pais
Quando Te invocaram santamente na fé e verdade [Sl 144,18; 1Tim 2,7].
Torna-nos submissos a teu nome todo-poderoso e todo santo
E aos que nos governam e dirigem sobre a terra [mesmo com as perseguições sanguinárias de Nero (ano 64) e de Domiciano (ano 92), os cristãos rezam pelos governantes].


61 – (1) Tu, Senhor, lhes deste o poder da autoridade,
Por tua força magnífica e inefável,
Para que soubéssemos que por ti lhes foi da¬da a glória e honra, e a eles nos submetêssemos,
Em nada contrariando a tua vontade.
Dai-lhes, pois, Senhor, saúde, paz, concórdia, estabilidade,
A fim de exercerem sem tropeços a soberania que lhes confiaste [ainda pelos governantes].
(2) Pois tu, Senhor dos céus, Rei dos Séculos [Tob 13,7; 1Tim 1,17; Apoc 15,3],
Dás aos filhos dos homens glória, honra e poder sobre o que existe na terra.
Tu, Senhor, dirige sua vontade no sentido do que é bom e agradável a teus olhos [Dt 12,25.28; 13,18; 21,9] em tua presença,
A fim de que exerçam a autoridade que lhes deste na paz e mansidão,
E obtenham tua graça!
(4) Só tu podes realizar esses bens
E outros ainda maiores entre nós.
A ti exaltamos
Pelo Sumo sacerdote [cf Heb 2,17; 3,1; 4,14s] e protetor de nossas al¬mas [cf 1Ped 2,25],
Jesus Cristo.
Por Ele te seja dada glória e magnificência,
Agora e de geração em geração
E pelos séculos dos séculos. Amém [cf Rom 11,36; 16,27; Heb 13,21].

62 – (1) Escrevemo-vos o suficiente, amados ir¬mãos, a respeito das disposições mais acertadas para nossa religião, como também a respeito da atitude mais favorável para as pessoas que querem levar uma vida santa na piedade e justiça. (2) Tocamos todos os aspectos que dizem respeito à fé, penitência, verdadeira caridade, continência, prudência e paciência, recordando que vos é necessário agradar santamente ao Deus poderoso em justiça, verdade e generosidade, mantendo a concórdia pelo esquecimento da injúria, no amor e na paz, com modéstia constante, como também nossos pais que mencionamos lhe agradaram, mantendo-se humildes na conduta para com o Pai, Deus e Criador, e para com todos os homens. (3) Tivemos tanto mais gosto em recordá-lo, quanto mais sabíamos estar escrevendo a homens de fé e de consideração, que se aprofundaram nas máximas do ensinamento de Deus.


63 – (1) É pois acertado que nos orientemos por tais e tão grandes exemplos, curvemos nossa cerviz e ocupemos o lugar da obediência, para acalmarmos a vã sedição e alcançarmos com lisura a meta [cf Filip 3,14] proposta dentro da verdade. (2) Haveis de proporcionar-nos alegria e prazer, se vos submeterdes ao que vos escreve¬mos pelo Espírito Santo e cortardes pela raiz a vossa ira nascida do ciúme, conforme o pedido que nesta car¬ta vos fazemos sobre a paz e a concórdia. (3) Enviamo-vos homens de confiança e prudentes que, desde a juventude até a idade mais avançada, tiveram conduta irrepreensível entre nós. Servirão de testemunhas entre vós e nós [A Igreja Mãe, de Roma; cf Gen 31,44]. (4) Assim agimos, para que saibais que toda a nossa preocupação ia, e vai, no sentido de que se restabeleça de imediato a paz entre vós [São Clemente, Papa, ao enviar seus delegados, está agindo como chefe que exige execução de suas ordens, e não apenas como pastor que dá conselhos. Os delegados hão de cuidar que as propostas sejam acatadas e a ordem restabelecida = O grifo e o negrito não são originais, mas para frisar o caráter oficial vindo da Igreja Mãe, sediada em Roma].

64 – (1) No mais, que Deus onividente, Senhor dos Espíritos e Dono de toda carne [Nm 16,22; 27,16; cf Heb 12,9; Apoc 22,6], que escolheu o Senhor Jesus Cristo e a nós por ele [cf 1Cor 8,6] para seu povo especial [Ex 19,5; Dt 7,6; 14,2; 26,18; Sl 134,4; Tito 2,14], conceda a toda alma que tiver invocado o seu nome magnífico e santo: fé, temor, paz, paciência e generosidade, continência, pureza e prudência, para agradar ao nome dele pelo Sumo sacerdote e nosso chefe Jesus Cristo [Heb 2,17; 3,1; 4,14], pelo qual lhe seja dada glória, majestade, poder e honra, agora e por todos os séculos dos séculos. Amém [cf Rom 11,36; 16,27; Heb 13,21; Fórmula litúrgica clara].


65 – (1) Aos nossos enviados Cláudio Efebo e VaIério Bito, junto com Fortunato, enviai-os depressa de volta na paz e com alegria, para que nos possam tão logo trazer noticias [cf 1Cor 16,11] sobre a harmonia e paz, pela qual tanto rezamos e suplicamos, e assim mais depressa nos alegremos da boa ordem entre vós. (2) A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja convosco e com todos os eleitos de Deus, através dele por toda parte. Por Jesus, seja dada a Deus glória, honra, poder e majestade, o trono eterno, desde todos os séculos e para todos os séculos dos séculos. Amém [cf Rom 11,36; 16,27; Heb 13,21. Alguns manuscritos antigos terminam pela assinatura: “Primeira Epístola de Clemente aos Coríntios”.

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