terça-feira, 3 de agosto de 2010

MINISTÉRIO E VIDA DO SACERDOTE

MINISTÉRIO E VIDA DO SACERDOTE
CARDEAL JOSEPH RATZINGER

Tradução de Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, a partir da tradução espanhola: Joseph RATZINGER, Convocados em el camino de la Fé. Madrid, Ediciones Cristandad, 2005, p.159-180.
1. CONSIDERAÇÃO PRÉVIA SOBRE O ESTADO DA QUESTÃO
Quando os Padres do Concílio Vaticano II elaboraram o Decreto sobre o ministério e vida dos presbíteros, tratava-se, antes de tudo, de dirigir uma palavra de alento aos sacerdotes diante dos grandes debates sobre o ministério episcopal, assim como diante das declarações significativas sobre o lugar dos leigos na Igreja e sobre a vida consagrada. Era evidente que para isto não se poderia contentar com algum tipo de consolação piedosa. Depois de os Bispos terem desdobrado o significado de seu ministério e de seu fundamento teológico, também a palavra para os sacerdotes deveria ter peso teológico. Somente desta maneira ela poderia ser um reconhecimento convincente pelos seus labores e alento para seu trabalho.
Não há dúvida de que esta palavra dirigida aos sacerdotes era necessária apenas por causa da relação entre os “estados” na Igreja. Quando os Padres sublinharam o significado autônomo do ministério episcopal diante do ministério do sucessor de Pedro, deviam estar seguros de que, na opinião pública da Igreja, havia um amplo acordo a este respeito, e mesmo poderia ser dito especialmente no âmbito do ecumenismo cristão. Por outro lado, o conceito católico de sacerdócio também havia perdido o seu valor original dentro da consciência eclesial; certamente, a crise deste conceito, que depois do concílio pôde ser percebida rapidamente e deu origem à crise existencial dos sacerdotes e das vocações sacerdotais, ainda não havia se expressado plenamente, porém já estava a caminho. Por um lado, esta crise foi resultado de um sentimento vital que havia mudado. Neste sentimento, o sagrado era cada vez menos compreendido, e o funcional era exaltado como única categoria determinante. Porém, por outro lado, a crise também possuía raízes teológicas absolutas, que, a partir de uma situação social em transformação, deu então origem a uma vitalidade imprevista. A própria interpretação do Novo Testamento parecia confirmar de forma muito enérgica uma consideração não-sagrada de todos os ministérios eclesiásticos. Não se via continuidade entre os ministérios sagrados do Antigo Testamento e os novos ministérios da Igreja nascente; muito menos poder-se-ia reconhecer uma ligação com as representações pagãs do sacerdócio. A novidade do cristão parecia se manifestar exatamente na dessacralização dos ministros. Os servidores das comunidades cristãs não se chamavam sacerdotes (hiereis), mas presbíteros (mais velho). É evidente que nesta maneira de interpretar o Novo Testamento estava em ação, fundamentalmente, a origem protestante da exegese moderna, porém isto não mudava a evidência que, contrariamente, parecia corresponder a tal interpretação: a questão era candente, mesmo que Lutero não tivesse tido razão diante de Trento.
Assim se confrontavam e se confrontam duas concepções do ministério sacerdotal: por um lado, uma perspectiva sócio-funcional que circunscreve a essência do sacerdócio ao conceito de “serviço” – concretamente serviço à comunidade no exercício de uma função no âmbito social da Igreja. Por outro lado, se encontra uma consideração ontológico-sacramental que, evidentemente, não nega o caráter de serviço do sacerdócio, porém o vê fundamentado no ser do serviço, e este ser sabe-se mais uma vez determinado por um dom
concedido pelo Senhor através da mediação da Igreja, o que se chama de sacramento. Juntamente com a perspectiva funcional acrescenta-se um deslocamento terminológico. Evita-se claramente o termo marcado de sacralidade “sacerdote/sacerdócio”, que é substituído pelo termo neutro e funcional “ministério”, que, até então, não desempenhara papel algum na teologia católica.
A esta diferença na compreensão da essência do ministério sacerdotal corresponde também, até certo ponto uma acentuação diferente na definição das tarefas dos sacerdotes: opõem-se à centralidade da Eucaristia para o sacerdócio (sacerdos-sacrificium), até então clássica no catolicismo, o primado da palavra, que até o momento fora tipicamente protestante. Certamente, uma concepção do sacerdócio pensada desde o primado da palavra não precisa ser de forma alguma necessariamente anti-sacramental: o próprio decreto sacerdotal do Vaticano II demonstra o contrário. Neste ponto surge a pergunta de até que ponto devem ser de alguma forma excludentes as alternativas apresentadas e de até que ponto possam fazer frutificar uma à outra e, com isso, resolver-se desde dentro. Trata-se da pergunta provocada pelo Vaticano II: até que ponto pode continuar a imagem do sacerdote que se fizera clássica depois de Trento? Como fazê-la progredir a partir dos questionamentos da Reforma, da exegese crítica e do sentimento vital da Modernidade sem perder o essencial? E, também, até que ponto, ao contrário, a idéia protestante de “ministério” permite uma abertura à tradição viva da Igreja Católica do Oriente e do Ocidente, já que, na questão do sacerdócio, não há, segundo Trento, nenhum tipo de diferença essencial entre catolicismo e Igreja Ortodoxa?
2. SOBRE A NATUREZA DO MINISTÉRIO SACERDOTAL
O Vaticano II não entrou nestas questões, pois elas haviam acabado de ser formuladas. Além disso, depois dos grandes debates sobre a colegialidade episcopal, sobre o ecumenismo, a liberdade religiosa e as questões do mundo moderno já não se dispunha nem de tempo nem de forças para tal empreitada. Assim, os sínodos de 1971 e de 1990 retomaram o tema do sacerdócio e complementaram as afirmações conciliares; a Carta de Quinta-feira Santa do Papa e o Diretório da Congregação do Clero aplicaram tudo isso concretamente no dia-a-dia da vida sacerdotal. Porém, por mais que o decreto conciliar não se refira expressamente às controvérsias da atualidade, mesmo assim, ele proporcionou uma orientação fundamental sobre a qual todo o resto poderia ser construído.
Que respostas encontramos então para os problemas justamente resenhados? Digamos de outra maneira: não se pode vincular o Concílio com uma alternativa determinada. Na definição introdutório de sacerdócio, diz-se que os sacerdotes, através da Ordenação, são promovidos ao serviço de Cristo Mestre, Sacerdote e Rei, e à participação de seu ministério, pelo que a Igreja é edificada aqui na terra como povo de Deus, corpo de Cristo e templo do Espírito Santo (1). No segundo parágrafo fala-se do poder de oferecer o sacrifício e perdoar os pecados. Esta missão especial do sacerdote, sem dúvida, está inserida expressamente em uma perspectiva histórico-dinâmica da Igreja: nela todos têm “parte na missão” de todo o corpo, porém “nem todos têm a mesma função” (cf. Rom 12, 4). Resumamos o que foi dito até agora, e, assim, podemos constatar que o primeiro capítulo do decreto põe ênfase claramente no aspecto ontológico do ser sacerdotal, e com isso sublinha também o poder de oferecer o sacrifício. É o que aparece descrito, mais uma vez, no início da terceira secção: “os presbíteros, tomados de entre os homens e colocados a favor dos homens no que se refere a Deus para que ofereçam sacrifícios pelos pecados, vivem com os demais homens como irmãos”. A novidade, diante de Trento, deve ser
notada na forte ênfase da relação entre vida eclesial e o caminho comunitário de toda Igreja onde se coloca esta visão clássica.
Isto, porém, é descrito de forma melhor, no início do segundo capítulo, onde se fala da tarefa concreta dos presbíteros: “o primeiro dever dos presbíteros como colaboradores dos bispos” é “anunciar a todos o Evangelho” (4). Agora aparece, expresso com clareza aqui, o primado da palavra, ou seja, o serviço de evangelizar. Surge então a pergunta: Como poderiam se relacionar entre si estas duas séries de afirmações: “consiste em oferecer o sacrifício eucarístico e administrar os sacramentos” e “o primeiro dever (primum officium) é anunciar o Evangelho (Evangelium evangelizandi)” ?
Fundamentação cristológica
Para chegar a uma resposta devemos nos perguntar primeiro: o que significa realmente “evangelizar”? Em que consiste? O que é este Evangelho? Mais uma vez: para fundamentar o primado do anúncio do Evangelho, o Concílio poderia muito bem ter-se remetido aos evangelhos. Vêm à minha mente algo que está na raiz do breve e significativo episódio que se encontra no início do evangelho de Marcos, quando o Senhor, que é procurado por todos por causa de seu poder milagroso, se retira para um lugar solitário e, ali, reza, (Mc 1,35ss). Diante da insistência de “Pedro e de seus companheiros”, o Senhor responde: “Vamo-nos para outro lugar, para as aldeias da redondeza, pois devo pregar também ali; foi para isto que eu vim” (1,38). Como finalidade específica de sua vinda Jesus indica o anúncio do Reino de Deus. Por isso, esta finalidade deve estar de acordo com a prioridade que determina todos os seus servidores: deslocar-se para proclamar o Reino de Deus, ou seja, fazer do Deus vivo, atuante e presente a prioridade de nossa própria vida. Então, para que haja uma compreensão correta desta prioridade já se pode tirar desta pequena perícope duas idéias adicionais: este anúncio deve estar unido, simultaneamente, com o recolhimento na solidão da oração pessoal. Precisamente tal recolhimento parece ser sua condição de possibilidade; e, está unido com a “expulsão dos demônios” (1,39), ou seja: não se trata apenas de palavras, mas ao mesmo tempo de atuação eficaz. Não tem lugar dentro de um belo mundo santificado, mas em mundo dominado por demônios, e significa uma intervenção libertadora neste mundo.
Porém, temos que dar um passo a mais e contemplar todo o Evangelho através da pequena, porém significativa, perícope de Marcos para compreender corretamente a prioridade de Jesus. Ele anuncia o Reino de Deus; Ele o faz, sobretudo, através de parábolas e também sob a forma de sinais, nos quais se nota este Reino sobre os homens como um poder atual. Palavra e sinais são inseparáveis. Onde os sinais são vistos como meros milagres, sem mensagem, Jesus interrompe a sua atuação. Mas Ele não permite tão pouco que a sua pregação seja considerada como um mero assunto intelectual, como matéria para debates: sua palavra exige decisão, produz realidade. É, neste sentido, palavra “encarnada”; a correspondência de palavra e sinal mostra a estrutura “sacramental”1.
Porém devemos dar um outro passo. Jesus não partilha conteúdos independentes de sua pessoa, como normalmente faz um mestre ou narrador. Ele é mais do que um rabi, é diferente. Ao desenvolver sua pregação nota-se de forma cada vez mais clara que, nas parábolas fala de si mesmo, que o “Reino” e sua pessoa estão unidos, que o “Reino” chega
1 Apresentei estas relações de forma mais detalhada em meu pequeno livro: Evangelium – Katechese – Katechismus (München 1995) 35-43.
em sua pessoa. A decisão que ele exige é uma decisão para estar com Ele como Pedro fez ao dizer: tu és o Messias (Mc 8,29). Finalmente, destaca claramente como conteúdo da pregação do Reino de Deus o próprio mistério pascal de Jesus, seu destino de Morte e Ressurreição; assim, de forma particular, na parábola dos agricultores homicidas (Mc 12,1-11). Assim se entrelaçam palavra e realidade de uma forma nova: a parábola provoca a ira dos inimigos que, justamente, fazem tudo o que se narra. Eles matam o Filho. Isto significa: as parábolas estariam vazias sem a pessoa viva do Filho que se “translada” (Mc 1,38), que “foi enviado” pelo Pai (12,6). Estariam vazias sem a verificação da palavra da cruz e a Ressurreição. Desta forma, entendemos agora que a pregação de Jesus deve ser considerada desde um sentido “sacramental” ainda mais profundo do que pudemos ver até agora: sua palavra traz consigo a realidade da Encarnação e o tema da cruz e da ressurreição. É palavra-ato neste sentido totalmente profundo. Assim o compreende a Igreja na correspondência entre pregação e eucaristia, porém também entre pregação e testemunho vivo e sofredor.
Partindo, porém, de uma perspectiva pascal, como aparece no evangelho de João, devemos dar mais um passo. Jesus é o Messias, dissera Pedro. Jesus é o Logos, acrescenta agora João. Ele mesmo é a Palavra do Pai que está junto de Deus e que é Deus (Jo 1,1). Nele esta Palavra se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14). O anúncio cristão não consiste em palavras, mas em a Palavra. “Portanto, quando se fala de serviço da Palavra de Deus, pensa-se ao mesmo tempo na relação intra-trinitária”2, e ao mesmo tempo “que este serviço participa da função da Encarnação”3. Com razão chama-se a atenção sobre o fato de que a pregação de Jesus se diferencia fundamentalmente do ensinamento dos rabinos no fato de que o “eu” de Jesus coloca a si mesmo no centro nevrálgico de sua mensagem4. Porém, ao mesmo tempo, deve-se conceder que o próprio Jesus, como algo característico de seu discurso, fez notar que ele não fala “em nome próprio” (Jo 5,43; cf. 7,16); seu “eu” está totalmente voltado para o “Tu” do Pai, não se encontra em si mesmo, mas conduz para o interior da dinâmica da relação trinitária. Para o pregador cristão isto significa que ele não fala de si, mas se converte em voz de Cristo para assim criar espaço para o próprio Logos e, através da comunhão com o homem Jesus, conduzir para a comunhão com o Deus vivo.
Desta forma retornamos ao Decreto sacerdotal do Vaticano II. Ele fala das diferentes formas de anúncio e faz notar como realidade constante em todas estas formas: que o sacerdote não pode ensinar sua própria sabedoria, mas que sempre se trata da Palavra de Deus, que conduz à verdade e à salvação (4). O serviço da Palavra exige uma crescente auto-expropriação do sacerdote, encontra-se sob o modelo das palavras de Paulo: “Já não sou eu quem vivo, é Cristo quem vive em mim” (Gal 2,20). Recordo-me de uma anedota das origens do Opus Dei. Uma jovem teve a oportunidade de participar pela primeira vez das conferências do fundador, Padre J. M. Escrivá. Ela tinha sobretudo uma grande curiosidade de escutar o tão elogiado orador. Porém, quando participou com ele da Missa – assim ela contaria depois – já não queria continuar escutando um orador humano, mas apenas reconhecer a palavra e a vontade de Deus. O serviço da palavra exige a participação na kénosis de Cristo, o abrir-se e o perecer em Cristo. O fato de ele não falar de si mesmo, mas de levar a mensagem de outro não significa, certamente, uma falta de participação
2 F. GENN, Trinität und Amt nach Augustinus (Einsiedeln 1986) 181.
3 Ibid., 183.
4 Cf. por exemplo B. R. ARON, Die verborgenen Jahren Jesu (Frankfurt 1962) 237s.; J. NEUSNER, A Rabí talks with Jesús (Doubleday, 1993) 30.
pessoal, mas o contrário: um perder-se dentro de Cristo que assume o caminho do mistério pascal e, desta forma, conduz para o verdadeiro encontro consigo mesmo e à comunhão com ele, que é a Palavra de Deus em pessoa. Esta estrutura pascal do “não eu” e, por conseqüência, do plenamente “eu mesmo”, mostra como, de forma totalmente definitiva, o serviço da palavra, para além de todo o funcional, conduz ao Ser e pressupõe o sacerdócio como sacramento.
2.2 Respaldo da tradição (Santo Agostinho)
Já que aqui fomos levados ao ponto central de nossa questão, gostaria então de tentar descrevê-lo através de dois conjuntos de imagens extraídas dos escritos de Santo Agostinho que, por sua vez, foram tomados da sua contemplação da palavra bíblica e, ao mesmo tempo, influíram de forma essencial na tradição dogmática da Igreja católica.
Assim, em primeiro lugar, nos encontramos com a denominação de sacerdote como servus Dei ou como servus Christi5. No pano de fundo desta fala de Servo de Deus, tomado da linguagem eclesial de então, encontra-se o hino a Cristo de Fl 2,5-11: Cristo, Filho de Deus, adquiriu a figura de servo, e se fez servo por nós. Devemos deixar de lado aqui a profunda teologia da liberdade e do serviço que Santo Agostinho desenvolve a este respeito. É significativo para nossa questão que o conceito de servo seja um conceito de relação. Servo é alguém em relação com outro. Quando o sacerdote é definido como servo de Jesus Cristo, isto significa que sua existências está essencialmente determinada de forma relacional: o fato de estar orientado para o Senhor configura a natureza de seu ministério de uma forma tal que se estende para dentro de seu próprio ser. Ele é servido de Cristo, para, a partir dele, ser com ele e para ele servidor dos homens. A relação com Cristo não se contrapõe à orientação para a comunidade (para a Igreja), mas, ao contrário, é o seu próprio fundamento e somente esta relação concede a esta orientação a sua profundidade absoluta. Ser remetido a Cristo significa ser introduzido em sua própria existência de servo, e estar com ele a serviço do “corpo”, da Igreja. Justamente porque o sacerdote pertence a Cristo, pertence de forma radical aos homens. Somente assim pode se dedicar a ele de forma tão profunda e incondicional. Isto significa, novamente, que a compreensão ontológica do ministério sacerdotal, que se estende ao interior do ser com o qual está unido, não se opõe à seriedade do funcional, da dimensão social, mas alcança uma radicalidade no servir que não seria pensável no âmbito meramente profano.
Com o conceito de “servo” está relacionada a imagem de caráter indelével, que passou a ser parte da fé da Igreja. “Caráter” significa, na linguagem da antiguidade tardia, o selo de propriedade que se imprime em alguma coisa, um animal, ou, até mesmo, uma pessoa, e que já não pode ser apagado. Desta forma, declara a propriedade de forma irrevogável e “evoca seu Senhor”. Poderíamos dizer que “caráter” significa pertença que sela a própria existência. Assim, a imagem de caráter volta a expressar um estar remetidos, um estar referidos, a respeito do qual estamos precisamente falando. E, concretamente, é uma pertença da qual já não se pode dispor por si mesmos; a iniciativa para isto provém do proprietário, de Cristo. Assim, declara-se a natureza do sacramento; eu não posso simplesmente me declarar como pertencente ao Senhor. Ele deve me aceitar primeiramente como sendo seu, então posso me introduzir neste ser aceito e assumi-lo por minha vez, procurar vivê-lo. Assim, a palavra “caráter” descreve, portanto, o caráter próprio do serviço a Cristo que reside no sacerdócio e esclarece, ao mesmo tempo, o que se quer dizer com sua
5 Cf. F. GENN, op. cit., 101-123; sobre o uso lingüístico geral de “Servus Dei” no tempo de Agostinho: P. BROWN, Augustinus von Hippo (Leipzig 1972) 114-118.
sacramentalidade. Só a partir disto pode-se compreender, portanto, como o caráter funcional (e igualmente ontológico) possa ser descrito como ius dandi, como pressuposto da administração válida dos sacramentos6. A pertença ao Senhor que se fez servo é pertença para os seus. Significa que agora o servo pode dar nos sinais sagrados o que por si mesmo não é capaz de dar: ele administra o Espírito Santo, absolve os pecados, atualiza o sacrifício de Cristo e o próprio Cristo, em seu santo corpo e sangue; todas estas são prerrogativas de Deus que nenhum homem pode dar a si mesmo, e para as quais nenhuma comunidade poderia delegá-lo. O fato de que o «caráter» seja expressão do serviço para a comunhão demonstra, por um lado, como, finalmente, o próprio Senhor sempre atua e, por outro lado, como ele, na Igreja visível, atua através dos homens. Assim, o caráter da «validade» do sacramento é garantido, também no caso de servos indignos. Ainda que ele se transforme, ao mesmo tempo, num juízo para estes servos, e numa exigência para viver o sacramento.
Agora, digamos algumas breves palavras sobre outra exposição com a qual Santo Agostinho tentou esclarecer, para si mesmo e para seus fiéis, a natureza do ministério sacerdotal. Ela lhe veio à mente a partir da meditação sobre a figura de João Batista, na qual Santo Agostinho vê a prefiguração da função do sacerdote7. Ele percebe que João, no Novo Testamento, com uma palavra encontrada em um dito, é denominado como “voz”, enquanto Cristo aparece no Evangelho de João como “a Palavra”. A relação entre “voz” (vox) e “palavra” (verbum) ajuda a compreender a reciprocidade entre Cristo e o sacerdote. A palavra existe no coração e só se torna perceptível fisicamente através da voz. Através da mediação da voz pode-se entrar na percepção do outro e, então, se tornar presente também em seu coração. Sem isso o orador da palavra se perderia. Por isso, o som material, a voz, que contém a palavra de uma pessoa para a outra (ou para as outras), pode passar. A Palavra permanece. A missão do sacerdote é, pura e simplesmente, ser voz da Palavra: “Eu devo diminuir e ele deve crescer”; a voz não tem outro sentido se não dar lugar à palavra; e então desaparece. A partir desta perspectiva, a grandeza e a miséria do ministério sacerdotal se manifestam em igual medida: o sacerdote é, como João Batista, mero precursor, servidor da Palavra. Não se trata dele, mas de outro. Porém, com toda sua existência, ele é vox; sua missão é transformar a si mesmo em voz da Palavra, e, precisamente desta forma, no ser entrega total, participa na grandeza da missão do Batista, na missão do próprio Logos. No mesmo sentido, Santo Agostinho denomina o sacerdote como “amigo do noivo” (Jo 3,29), ao qual não corresponde uma noiva, mas que, como amigo, participa da alegria das bodas: o Senhor transformou o servo em amigo (Jo 15,15). Agora, o amigo pertence à casa e permanece na casa; de servo ele se converte em pretendente (Gal 4,7; 4,21-5,1)8.
3. CRISTOLOGIA E ECLESIOLOGIA: O CARÁTER ECLESIAL DO SACERDÓCIO
Com o que foi exposto até agora falamos do caráter cristológico do sacerdócio, que tem sempre um caráter trinitário, pois o Filho, segundo sua natureza, procede do Pai e se dirige a Ele. Ele se doa no Espírito, que é o amor e que, por isso, é a doação em pessoa. O decreto conciliar salienta, pois, com razão, dando um passo a mais, que o caráter eclesial do
6 GENN, op. cit. 34, 63s; a respeito do conceito antigo de caráter (correspondente ao grego estigma, esphragis) cf. H. SCHLIER, Der Brief na die Galater (Göttingen 1962) 284, com mais bibliografia ali.
7 Sermo, 293,1-3: PL 38, 1327s.
8 GENN, op. cit., 139ss.
ministério não pode se separar de seu fundamento cristológico-trinitário. A encarnação da Palavra significa que Deus não quer simplesmente chegar ao espírito dos homens através do Espírito, mas que Deus busca o homem através do mundo material, que Deus deseja afetar o homem também, precisamente, como ser social e histórico. Deus quer chegar aos homens através dos homens, Deus veio aos homens de tal maneira que eles se encontram entre si por Ele e n’Ele. Desta forma, a encarnação compreende a comunitariedade e historicidade da fé. O caminho para o corpo significa que a realidade temporal e a sociabilidade do homem se convertem em fatores da relação humana com Deus que, de novo, se baseia na precedente relação humana de Deus. Por isso, cristologia e eclesiologia são inseparáveis entre si: a ação de Deus cria o “povo de Deus” e o “povo de Deus” se transforma a partir de Cristo em “corpo de Cristo”, segundo a profunda interpretação que Paulo faz na carta aos Gálatas da promessa a Abraão. Ela foi feita – assim lê São Paulo o Antigo Testamento – “à descendência” de Abraão, portanto não a muitos, mas a um. A ação de Deus, segundo São Paulo, tem como objetivo que nós, os muitos, cheguemos a ser não simplesmente “um”, mas “de um”, na comunhão corporal com Jesus Cristo (Gal 3,16s.28).
O Concílio salientou precisamente a partir desta profundidade eclesiológica da cristologia a dinâmica histórica-universal do acontecimento de Cristo, a cujo serviço está o sacerdote. A meta última, para todos nós, é sermos felizes. Porém só há felicidade na solidariedade de uns com os outros, e esta só acontece na infinitude do amor. Só há felicidade quando o eu é introduzido no interior do divino, na divinização. Assim, junto com Santo Agostinho, o Concílio afirma que a meta da história é que a humanidade se transforme em amor: assim será adoração, culto vivo, “cidade de Deus”. E assim o desejo mais íntimo da criação inteira pode se realizar: que Deus seja tudo em todas as coisas (1Cor 15,28; Decreto sacerdotal 2,42-55; Santo Agostinho DcD X 6). Só é possível compreender de forma definitiva o que é o culto, o que são os sacramentos, a partir desta grande perspectiva.
Justamente esta perspectiva, aberta na visão de conjunto das últimas perguntas, nos conduz a uma realidade muito concreta: porque é assim, a fé cristã nunca é mera relação subjetiva ou pessoal-privada com Cristo e sua palavra, mas que é totalmente concreta e eclesial. A partir desta realidade, o decreto conciliar põe em relevo, talvez de uma forma um pouco forçada, o fato de os presbíteros estarem orientados para o bispo: eles o representam, agem em seu nome e por seu mandato. A grande obediência cristológica, contra a qual se voltou o Adão desobediente, se concretiza na obediência eclesiástica e, para os sacerdotes, a obediência eclesiástica se concretiza na obediência ao seu bispo. O Concílio deveria ter acentuado ainda mais que primeiro deveria existir a obediência comum de todos com relação à Palavra de Deus e sua apresentação na tradição viva da Igreja. Este compromisso comum é também uma liberdade comum; protege da arbitrariedade e garante o verdadeiro caráter cristológico da obediência eclesiástica. A obediência eclesiástica não é positivista, não se trata simplesmente de uma autoridade formal. Consiste naquele que é em si mesmo obediente e que personifica Cristo obediente. Porém é independente da virtude e da santidade do ministério, precisamente porque ela se refere ao objetivo da fé dada pelo Senhor que supera toda subjetividade. No fato de que a obediência ao bispo vai além da própria igreja local, trata-se também da obediência católica: o bispo é obedecido porque ele representa aqui toda a Igreja em um lugar. E se trata de uma obediência que remete para além do momento histórico até a totalidade da história da fé. Se baseia em tudo o que se realizou na communio sanctorum, e justamente assim se abre para o futuro no qual Deus será tudo em todas as coisas e nós seremos um só. Daí que na
exigência da obediência se encontra uma exigência ainda mais séria para o que representa a autoridade. Porém isto não significa que a obediência seja condicional: é totalmente concreta. Não obedeço a um Jesus que eu ou outros imaginamos a partir das Escrituras; assim eu obedeceria apenas às minhas próprias idéias preferidas e adoraria a mim mesmo na imagem de Jesus criada por mim. Não, obedecer a Cristo significa obedecer a seu corpo, a ele em seu corpo. A partir da carta aos Filipenses a obediência de Jesus aparece, como desdobramento da desobediência de Adão, no centro do acontecimento salvífico. Na vida sacerdotal esta obediência deve ser concretizada como obediência em relação à autoridade da Igreja, que está encarnada no bispo. Só desta maneira chegará a ser real a refutação da autodivinização. Somente assim Adão será vencido dentro de nós e terá início o novo ser humano. Num tempo em que a emancipação é vista como o núcleo próprio da libertação e a liberdade aparece como sendo o direito de fazer tudo e somente aquilo que eu mesmo quero, o conceito de obediência está, por assim dizer, anatematizado. A obediência não somente foi eliminada de nosso vocabulário, mas até do nosso pensamento. Porém é justamente este conceito de liberdade que dá origem à incapacidade de relacionamento pessoal, à incapacidade de amar. Escraviza os homens. Por isso, a obediência, compreendida de forma correta, deve ser reabilitada e situada novamente no centro da espiritualidade cristã e sacerdotal.
4. APLICAÇÃO ESPIRITUAL
Ali onde a cristologia é compreendida pneumatológica e trinitariamente e, ao mesmo tempo, eclesialmente, surge – já o vimos – o espaço para a espiritualidade, para a pergunta da fé vivida completamente a partir de si mesma. O decreto conciliar, uma vez colocados os fundamentos dogmáticos também da Constituição sobre a Igreja, se ocupou de forma especialíssima deste aspecto, também com afirmações bastante concretas. Gostaria apenas de salientar um aspecto. O número 14 do Decreto fala do difícil problema de como o sacerdote poderia salvaguardar a unidade interna de sua vida, quando se encontra dividido pela diversidade de suas tarefas as mais variadas, o que é cada vez mais freqüente. Um problema que, em meio à crescente falta de sacerdotes, ameaça em se transformar cada vez mais na crise específica da existência sacerdotal. Um pároco, ao qual atualmente se confiam três ou quatro paróquias, encontra-se sempre se deslocando de um lugar para outro; esta situação, que já é bastante conhecida pelos missionários, se transformará também na regra para os países originariamente cristãos. O sacerdote deve procurar atender à demanda sacramental das comunidades, às tarefas administrativas que o assediam, às questões de todo tipo que o exigem e, além do mais, à necessidade pessoal de muitos homens para os quais, por causa disto tudo, com freqüência, sobra muito pouco tempo. Em meio às atividades que o arrastam de um lado para o outro, sacerdote vai se sentindo vazio, e torna-se cada vez mais difícil encontrar tempo para se retirar e reunir novas forças e inspiração. Dividido exteriormente e vazio interiormente, perde a alegria em seu trabalho que, no fim das contas, só lhe parece uma carga e a duras penas consegue ainda suportá-lo. Ele é obrigado a fugir.
O Concílio ofereceu três impulsos para superar esta situação. A motivação fundamental é a comunhão interna com o Cristo, cujo alimento é fazer a vontade do Pai (Jo 4,34). É importante que a unidade ontológica com o Cristo torne-se viva na consciência e, assim, na atividade: tudo o que eu faço, faço-o em comunhão com ele. É justamente ao fazê-lo, que estou com ele. O que há de variedade e, muitas vezes, realmente contraditório
em minhas atividades está em sintonia com uma única missão: tudo é ser com Cristo, atuação instrumental em comunhão com ele.
Daqui resulta uma segunda motivação: a ascese sacerdotal, juntamente com a tarefa pastoral, não se pode estabelecer como uma carga acrescentada e uma tarefa que sobrecarregará ainda mais o meu dia. No próprio agir, aprendo a superar a mim mesmo, deixar minha vida e entregá-la; na desilusão e no fracasso, aprendo a renunciar, a aceitar a dor, a me abandonar. Na alegria do êxito, aprendo a ser agradecido. Na celebração dos sacramentos, eu os acolho interiormente; nenhuma de minhas realizações é uma obre meramente externa: falo com Cristo, através de Cristo com o Deus trino, e assim rezo com e pelos demais. Esta ascese do ministério, o ministério como ascese de minha vida é, sem dúvida alguma, uma motivação muito importante que certamente exige um exercício constante, uma organização interior da missão a partir do seu próprio ser.
Desta forma, torna-se imprescindível uma terceira motivação. Mesmo quando procuro viver o ministério como ascese e a atividade sacramental como encontro com Cristo, ainda assim, preciso de momentos para que este objetivo interior possa, de algum modo, se tornar realidade. Tudo isto – diz o Decreto conciliar – só se pode alcançar se os sacerdotes se introduzirem, de forma cada vez mais profunda, com suas próprias vidas, no mysterium Christi. Chama bastante a atenção o que São Carlos Borromeu, a partir de sua própria experiência, diz a respeito deste tema: se o sacerdote deseja alcançar uma vida verdadeiramente sacerdotal, deve concentrar-se nisto: jejuar, orar, fugir das más conversas, assim como intimidades prejudiciais e perigosas. “Se ao menos uma fagulha do amor divino já se acendeu em ti, não a mostres logo, não a exponhas ao vento!...; fica recolhido junto de Deus... Exerces cura de almas? Não negligencies por isso o cuidado de ti mesmo, nem dês com tanta liberalidade aos outros que nada sobre para ti. Com efeito, é preciso te lembrares das almas que diriges, sem que isto te faça esquecer da tua... Se administras os sacramentos, ó irmão, medita no que fazes; se celebrares a missa, medita no que ofereces; se salmodias no coro, medita a quem e no que falas; se diriges as almas, medita no sangue que as lavou...”9. Por si só o “meditare” (meditar), que aparece quatro vezes, mostra o quanto é essencial para este grande pastor de almas o aprofundamento interior, em vista do nosso agir. Nós sabemos de que forma radical Carlos Borromeu se entregou a si mesmo aos homens, morrendo aos 46 anos, consumido pela devoção ao seu ministério. Pois bem, é justamente este homem, que realmente se consumiu por Cristo, e, a partir dele, pelos homens, quem nos ensina que tal doação de si mesmo não é possível sem o cuidado e o refúgio de uma verdadeira interioridade crente. Neste aspecto precisaríamos aprender de novo, mais uma vez. Nas últimas décadas a interioridade foi se tornando cada vez mais suspeita de intimismo e privacidade. No entanto, o serviço sem interioridade se transforma em ativismo vazio. A desilusão de não poucos sacerdotes, que haviam iniciado sua missão com grande idealismo, consiste, no fim das contas, nesta suspeita com relação à interioridade. O tempo para Deus, para que cada um esteja interiormente diante dele, é uma prioridade pastoral que, de certa forma, me seja permitida a redundância, é prioritária com relação a todas as demais prioridades, que são igualmente importantes. Não se trata de uma carga acrescentada, mas da respiração da própria alma, sem a qual ficamos necessariamente sem alento espiritual, o alento do Espírito Santo. Também são importantes e oportunas outras formas de descanso, porém a maneira fundamental de descansar das atividades e de aprender novamente a amar é a busca interior do rosto de Deus, que sempre nos devolve de
9 Acta Ecclesiæ Mediolanensis (Milão 1599) 1177s: “Leitura da Liturgia das Horas do dia 4 de novembro”.
novo à alegria em Deus. Um humilde, e em sua simplicidade, grande pároco de nosso século, Padre Dídimo Mantiero (1912-1992) de Bassano del Grapa, escreveu em seu diário espiritual: “As conversões foram e sempre serão uma conquista da oração e do sacrifício de fiéis anônimos. Cristo não ganhava as almas pela força de seu maravilhoso discurso, mas, sobretudo, pela força de sua oração constante. Durante o dia pregava, porém durante a noite rezava”10. As almas, ou seja, as pessoas vivas, não se movem para Deus simplesmente através da persuasão ou do debate. Elas querem ser interpeladas por Deus e para Deus. Por isso, a interioridade cristã também é a ação pastoral mais importante de todas. Em nossos projetos pastorais, isto deveria ser considerado muito mais intensamente. Devemos aprender de novo, em fim, que precisamos de menos discussão e mais oração.
5. PERSPECTIVA FINAL: A UNIDADE MEDIADA CRISTOLOGICAMENTE ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO
Como conclusão, gostaria de retornar, mais uma vez, ao problema esboçado na introdução: o que significa o sacerdócio da Igreja segundo o Novo Testamento? Ele existe de alguma forma? Estaria certa a contestação dos reformadores, quando dizem que a Igreja traiu a novidade do cristianismo e, invalidando a revolução cristã, voltou a fazer dos presbíteros sacerdotes? Não deveria ter permanecido sem sacralização nem sacramentalização em estreita sintonia com o que é mais antigo? Se se deseja responder adequadamente a estas perguntas, não bastam meras investigações terminológicas sobre a distinção inicial e a fusão que aconteceu posteriormente entre os conceitos de “presbýteros” e “hierós” (sacerdote). Deve-se aprofundar mais; toda a problemática da relação entre o Antigo e o Novo Testamento encontra-se em discussão. O Novo Testamento supõe uma ruptura essencial com o Antigo ou um cumprimento essencial em que tudo é assumido de forma transformada e, justamente na renovação, tudo se conserva? A graça se encontra contraposta à lei ou existe uma conexão interna entre ambas?
Em primeiro lugar é necessário constatar historicamente que, no ano 70, o templo de Jerusalém foi destruído e, com ele, desapareceu todo o sistema de sacrifício e sacerdócio, que de certa forma constituía a parte principal da “lei”. O judaísmo, por sua vez, tentou conservar o que fora perdido, aplicando os escritos sagrados a respeito do templo à vida dos judeus11; por outro lado, recuperou em sua espiritualidade a herança perdida do templo na forma de esperança orante pelo restabelecimento do culto de Jerusalém. A sinagoga, que constitui um lugar de reunião para oração, anúncio e escuta da palavra, é apenas um fragmento na expectativa de algo maior. Uma interpretação estritamente reformada do ministério espiritual e do culto cristão reduz, porém, o cristianismo a uma imagem da sinagoga, a reunião, palavra e oração. A interpretação historicista da unicidade do sacrifício de Cristo desterra o sacrifício e o culto ao passado e encerra no presente tanto o sacerdócio como o sacrifício. Entretanto, cada vez mais se pode notar nas igrejas da Reforma que, com isto, não se pode compreender a grandeza e a profundidade do acontecimento neo-testamentário. Pois, se assim fosse, o Antigo Testamento não teria chegado ao cumprido. De fato, na ressurreição de Cristo o templo foi construído de uma forma nova através do próprio poder de Deus (Jo 2,19). Este templo vivo – Cristo – é ele mesmo o novo sacrifício, que tem no corpo de Cristo, a Igreja, seu
10 L. GRYGIEL, La “Dieci” di Didimo Mantiero (San Paolo, Milão 1995) 54.
11 Cf. NEUSNER, op. cit. em nota 4, por ex., 114s.
hoje permanente. A partir dele e nele existe o verdadeiro ministério sacerdotal do novo culto, no qual se realizam todas as “figuras”.
A partir disto deve-se rechaçar uma concepção que pressuponha nos elementos do culto e do sacerdócio a ruptura total com a história salvífica pré-cristã, e negue a conexão entre o sacerdócio vetero-testamentário e o do Novo Testamento. Pois, desta maneira, o Novo Testamento não seria a realização, mas uma contraposição à Antiga Aliança; a unidade interna da história salvífica seria destruída. Através do sacrifício de Cristo e sua aceitação na ressurreição, toda a herança cultual e sacerdotal da Antiga Aliança foi entregue pela Igreja. Toda esta plenitude do sim cristão deve ser sublinhada diante de uma redução da Igreja a uma sinagoga; só assim se compreende a largueza e a profundidade do ministério da sucessão apostólica. Neste sentido, devemos dizer com decisão, e não envergonhados quase que pedindo desculpas: sim, o sacerdócio da Igreja é continuação e recepção do sacerdócio vetero-testamentário, que, justamente na novidade radical e transformadora, encontra sua autêntica realização. Também no relacionamento do cristianismo com as outras religiões do mundo, esta perspectiva é importante. Quanto mais o cristianismo realizar um novo início daquilo que é antigo, que provém de Deus e que é totalmente distinto, tanto menos ele será uma simples negação da busca humana. Somente assim, a atitude de expectativa presente nestas religiões, que de outra forma seria destorcida e desfigurada, não cairia no vazio. Esta interpretação do sacerdócio não significa uma depreciação do sacerdócio geral dos batizados. Mais uma vez foi Santo Agostinho quem salientou isto de forma belíssima denominando os crentes de servos de Deus; de fato, ele chama os sacerdotes de servos dos servos, e, desde a perspectiva de sua missão, considera os crentes como seus senhores12. O sacerdócio do Novo Testamento se encontra em continuidade com o Senhor que lava os pés: sua grandeza só pode consistir em sua humildade. Grandeza e pequenez existem uma na outra, desde que Cristo, sendo o maior, se fez o menor, desde que ele, o primeiro, ocupou o último lugar. Ser sacerdote significa entrar nesta comunidade do fazer-se pequenos, e, assim, participar da glória comum da salvação.

CARDEAL JOSEPH RATZINGER

FONTE: BLOG PE.PAULO RICARDO

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